quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Antologia 2008



Como ano passado, no último dia do ano apresento mais uma antologia Fast Fábula, revelando os quinze melhores textos deste ano segundo meu gosto. Desta vez não serão somente contos, já que muitos de meus preferidos são esses fragmentos que classifico como divagações. Assim, quem chegou atrasado poderá ver o que melhor temos a oferecer:
Desta vez por ordem de aparição:
1- Noturno
2- Epifania
3- O salmão e o grande amor.
4- Amor eterno
5- Banho violeta
6- Uma donzela
7- Cantilena torta
8- Ouro de tolo
9- Fumaça fria
10- Ciranda: Syd
11-Toni & Berto
12- Cada dia
13- Terceiro ato
14- Queridas quimeras
15- Dona aranha
Não incluí nesta antologia nenhum dos capítulos de Cecília, já que deixaram de ser histórias isoladas.
Um 2009 maravilhoso para todos... cheio de sonhos fabulosos e devaneios!
Para janeiro já estou preparando muitas especialidades... minhas férias no Rio estão sendo inspiradoras, este anjo da imagem faz parte dos souveniers...

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Curtas de meio de semana VI


1 – Como estou de férias na casa de meus pais somente uma grande preocupação me assola: engordar!
2 – Em companhias ótimas para momentos de ócio. Nas horas de silêncio estive em longos debates com Thomas Mann e o jovem Tadzio, para as horas de som finalmente encontro a Gnossienne no. 1 de Satie e descubro que foi composta para mim.
3 – Parece que a Brasil tá se afundando em chuvas... o que pode acabar com a vida de muitas famílias dignas e meu réveillon em Copacabana.Vamos fazer um grande sacrifício aos deuses e santos da chuva? Acho que estão com fome...
4 – Algum(a) adolescente virgem à disposição?
(se não aparecer ninguém vou sacrificar papai-noel mesmo, aquele gordo safado daria uma libação e tanto)

5 –Feliz Natal!
(Na imagem Valentina atacando a árvore de Natal)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Dona Aranha


Ela permanece em sua teia, resignando-se ao canto escuro daquelas paredes. Nos bons tempos fora uma teia de bordados intricados e maravilhosas rendas que atraía amantes voluptuosos.

Hoje é o covil de uma madame decadente.
Antes era teimosa e agora nada sente.

Depois de tantas quedas permanece para sempre quieta e obscura, sem vontade, desejos e ambições maiores do que não sair mais dali. Eventualmente alguns pobres diabos caem em sua teia, somente moribundos e loucos perdidos que ela devora por hábito antigo.
O rito automático duma devota caduca.
Nem mesmo a fome pode movê-la de sua própria e ingrata companhia.

Já passou a chuva
o sol já tá surgindo
e a Dona Aranha não consegue mais subir.

(não sei a autoria da imagem)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Eco


Terá alguém aí?


Esse blog anda tão vazio que nesta última semana até eu estive deixando de lado. Não que chegasse a ter vontade de abandonar, mas estou com um pouco de desleixo... preguiça de inventar coisas com tanta coisa para arrumar para as viagens, tanta coisa pra assistir na cidade antes de partir, tanta vontade de não fazer nada além de apreender a inevitável morte de coisas que cada ano acumula. Mais um monte de cacarecos para o quartinho de despejo.



Pelo menos por enquanto ainda escuto a minha própria voz...


(ah... um quadrinho do Bosch, que por sinal era o tema do cabeçalho do blog ano passado. Só pra aproveitar um pouco da onda nostálgica que o fim-de-ano traz)



quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Pés de fogo

Quando a coisa pegou fogo Vânia pensou em sua avó dançando sobre brasas. Era uma lembrança forte: a velha não somente provava sua fé para toda a cidade como era ainda capaz de debochar daquele chão de fogo. Depois mostrava orgulhosa o pé intacto de queimaduras a uma multidão espantada. Quando morreu quase virou santa! Vânia então reergueu a cara estapeada de um chão frio e simplesmente dançou até que das faíscas de seu salto brotassem chamas. Arderam consigo todos que estiveram ao seu alcance.

(imagem de Matisse)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Queridas Quimeras (III)


Restam então as mais loucas, que são as duas filhas da escriba. Metem-se no meio de qualquer devaneio que encontram e se entregam apaixonadas. Suas cabeças nascem e morrem de uma maneira espantosa, até bichos diversos de bodes ou dragões já surgiram dessas almas incontroladas. Uma delas se diz cineasta, roteirista, às vezes até se mete a publicitária e irrompe aos gritos porque alguma nova idéia mirabolante explodiu. Sua irmã gosta de teatro, mas não sabe ao certo qual seu papel... no fundo quer ser grande poeta trágico e coleciona caveiras, embora sinta um desejo delirante de estar sempre no meio do palco. Juntas brincam de bonecas e fantasiam o parto de mais mil quimeras.
Então eu penso em matá-las! Deixar que meu caminho não seja mais atacado pelos humores escandalosos dessas minhas queridas. Planejo e sonho armadilhas mesmo quando estou iludido, mesmo tomado pelo medo da solidão infinda sou capaz de gargalhar no meio da noite enquanto as quatro dormem em sonhos concretos. Nestas horas sinto minha cabeça de bode coçar, um arrepio na penugem de fera e no espelho ignoro a grande verdade estampada, tão nua e crua.
As outras então se entreolham com malícia e crueldade, debochando da tola irmã que não se enxerga.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Queridas Quimeras (II)


As duas mais velhas vivem numa briga intensa, porém velada. A primogênita é a escriba, que também é mãe de mais duas. Tem uma cabeça de dragão dourada que se tornou maior que sua cabeça de leão. Embora seja a mais descrente, e tenha quase morrido uma vez, nunca perde a majestade. Zomba da correria que as outras passam diante de pequenas oportunidades do acaso.
_ Conformem-se queridas! Afinal não há nada de errado conosco... mais vale ser um monstro fabuloso dentro dum coração sincero do que eterno escravo de interesses mesquinhos...
A segunda é a cantora, capaz de belíssimas polifonias a três vozes, é a mais assanhada e vaidosa de todas, mesmo que em alguns momentos tenha sido um pouco esquecida e até desprezada. Sempre viveu embebida em seu amor próprio! Já que costuma ser a mais reconhecida e bem sucedida de todos. Apesar de ser narcisista sabe também ser amiga dedicada e irmã complacente em horas de crise.
Então simplesmente canta... dizendo ainda que qualquer cantilena entoada no acaso de afetos verdadeiros justifica sua existência fantástica.


(continua... na imagem uma Quimera de Gina Litherland)

sábado, 29 de novembro de 2008

Queridas Quimeras

Antes de ter musas, tenho quatro Quimeras gordas e monstruosas. Frequentemente escancaram seus dentes de leão, cobra, bode... até dragão! Amo essas malditas, mesmo quando tomam a rédea de minha vida, embora chegue também a um ódio louco quando me embaçam a realidade. Em momentos cruciais soltam rosnados de tremer terra! Em momentos pacatos palpitam muito enquanto disputam o destino para seu lado... algumas vezes até se ajudam, mas sempre brigam muito e falam demais.
Cada uma tem cerca de três cabeças.


(continua)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Agnes


Com todo coração Agnes sempre preparara os perus para as festas de sua família. E mesmo depois que os antigos se foram ainda restavam seus filhos, que cada vez mais subiam na vida. Em meio a seus títulos de nobreza ela se contentava em agradá-los servindo anonimamente em seus jantares. Humildemente foi amolecendo as carnes de outros tempos, adocicando os temperos até que, sem que ela mesma notasse, entregou-se inteira e voluptuosa como prato principal.


(não sei a autoria da imagem)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Abstraindo


As melhores aulas geralmente são aquelas que vêm da pura espontaneidade das crianças. Isso aconteceu esta semana, quando uma aluna ficou intrigada com a pintura abstrata que ilustra a capa de meu caderno de anotações. Rapidamente mais alguns aglomeraram em torno, na tentativa de decifrar o desenho:
_ Eu não vejo nada!
_ Eu vejo um peixe...
_Tem uma menina...
E do nada a um conjunto de figuras lançadas e interpretadas de diversas maneiras eis que vem a grande conclusão:
_ Tem o mundo aí!
E estava todo ali, com florestas praias e até a China. Prontinho para quem quisesse enxergar.


(Imagem de Miro, que não é a que esta na capa de meu caderno, já que esta não tem a referência do autor para que pudesse colocar aqui pra vocês)

domingo, 16 de novembro de 2008

Espirolando



Este vídeo (de Marcel Duchamp e John Cage) não se trata de uma tentativa de hipnotizar você caro leitor, antes disso pretendemos um tratamento para a lucidez... concentre-se nas espirais e deixa sua mente livre... percorrendo aquelas escadarias sem fim do castelo de dentro.
Não tenha medo de abrir portas pelo caminho.
Caso durma, me mande carinhosamente um souvenir da terra nova que encontrar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Café para atrair musas

Para Ana (mas não para Ana!)

Começamos num café de fim-de-tarde: mastigamos pãezinhos, bolo, geléia de jabuticaba, a própria língua portuguesa com temperos agridoces, algumas pequenas neuroses cotidianas e ainda Department of Eagle, Regina Spektor, Air e um ensopada com um toque húngaro.
E finalmente nossas amigas musas foram se achegando, tá certo que são umas musas um tanto destrambelhadas, mas são generosas. A mais caprichosa delas olhou para nós e disse incisiva:
_ Quero ver se desta vez sai, hein...
(e quem somos nós para fazer desfeita com ela?)

sábado, 8 de novembro de 2008

Terceiro Ato


encomendado por Maria Cláudia
Há muito desconfiava que me preparam uma armadilha. Desconfio desde o primeiro momento que olhei fundo no lado escuro e pude ver os vultos. Seriam fantasmas ou alucinações? Espíritos inquietos que assistem minha vida e murmuram entre si, compartilhando seu desejo por sangue. É deles que emergirá minha morte, não de meus sete ministros, que agora me chamam a atenção, tentando afastar-me desses pensamentos e distrair-me da estranha realidade que se insinua, numa cena tantas vezes repetida. Eles propõem um brinde e sorriem, mas apesar dos dentes arreganhados seus olhos denunciam o sorriso falso, olhos que não conseguem esconder uma ânsia desesperada. Somente agora posso dar conta de que tudo ao meu redor é verdadeiramente falso, até mesmo esse corpo que não é meu.
Esse é o momento em que a tragédia se concretiza, quando a terrível fatalidade tramada pelo sentimento mesquinho de um desconhecido recai sobre mim. Tudo é controlado para que esses olhos estranhos na escuridão acreditem numa lenda tola, como essa luz que se afunila sobre o cálice reluzente... deveria beber o brinde envenenado e me entregar a essa vida que não escolhi?
Corro para fora desse mundo artificial, enfrento esse espaço obsceno sem medo de atravessar o lado escuro... ignoro a surpresa dessas pessoas que não podem entender minha verdadeira tragédia. Fujo através da cidade para me jogar da primeira ponte que encontrar, assim não me mato sozinho e levo comigo o corpo infame desse ator que me interpreta.

(imagem de Joan Ponç)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Manhã turva de Fel


Um cavalo descomunal e terrível saltava enfurecido na entrada de sua casa. Vários homens pulavam em seu dorso tentando contê-lo, mas eram atirados com violência entre coices, saltos e relinchos bestiais. Fel contemplava amedrontado da janela, sem suportar sequer o olhar do animal. Só percebeu que Cecília estava ao seu lado quando um homem finalmente conseguiu alcançar o dorso do bicho e lhe aplicar uma injeção.
_ Pobrezinho... disse Cecília vendo o cavalo desabar.
_ Como assim? Olhe...
Respondeu indignado apontando a face retorcida de bicho louco, que mesmo já sendo arrebatado pelo sonífero ainda tentava morder alguém com dentes estatelados.
Aí acordou atônito e suado, com medo daquele bicho que pulava incontrolável em algum lugar dentro de si.
Surpreendeu também a ausência de Cecília em sua cama, e na busca por algum vestígio somente encontrou restos de sonhos ainda vivos entre um pouco do cheiro dela.
Suspirou a falta de um bilhete qualquer.

(Apenas para avisar a possíveis leitores que chegaram recentemente, esse post faz parte de Histórias de Cecília, não é uma novela, mas uma série de histórias e fragmentos envolvendo esta personagem e os que a rodeiam. Para conhecer o conjunto é só ir no cardápio. Imagem de Dali)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O Teatro e eu


Quero muita merda esta semana! Merda aqui no melhor sentido da palavra, porque estou na semana mais teatral de todas que já vivi. Agora todo dia me pergunto: como pude demorar tanto assim para fazer teatro? Nasci no dia do teatro e tinha esse desejo muito forte na infância... era tão forte quanto o desejo de ser escritor. Mas vai entender esses caminhos tortos que acabamos percorrendo, inda mais para chegar num lugar que tem um sabor de origem, de lar redescoberto.
Sexta terá ensaio aberto (ou pré-estréia) da peça “Ao Vencedor, as Batatas”, adaptação do Brás Cubas do Machado, minha principal função é a música, mas estou atuando também, tenho inclusive dois papéis! E sábado participo da mostra do Teatro Vocacional, o projeto que me abriu as portas do palco.
O que será o teatro em minha vida? Complemento? Loucura passageira? Mais uma quimera? Atividade para o resto da vida? Sabe-se-lá... de qualquer maneira ele faz parte, seja como crescimento pessoal ou ampliação de minha visão artística...
Brindes de Baco para todos nós!
E mais uma vez: Evoé!

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ladainha


Sônia veio essa noite e não me deixou dormir. Chegou entre sonhos, num deles eu acordava e lidava já com os problemas desta manhã, depois ela sentou-se em minhas pálpebras e firmou sua ladainha:
_ Deixe que esses demônios te cavalguem, querido. Antes sua dança desconcertada que a tentativa de quietude em hora errada. Tempos calmos sempre vêm... mesmo que não se entregue à tempestade, terá ainda muitas horas de tédio para degustar...

(imagem de Fuseli)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Syrinx


Uma pérola de Ryan Larkin, sobre música de Debussy...

Aí está o mito de Pã e Syrinx.

Dispensa qualquer palavra.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Tic-tac


Ela não perdoava nunca, era sempre assim:
_ pisou na bola uma vez baby vá de retro.
Isolava-se porque todos teriam o seu momento íntimo de vacilo. Foi assim com a mãe que marcou friamente a cesária e a privou de seu direito cósmico de nascer em aquário, com o namorado que preferia vídeo-game, ou ainda o porteiro que tinha uma mania de não dar alguns recados por pura soberba. O que dizer então de pessoas que mal conhecia? No fim sabia que mais cedo ou mais tarde seria inevitável o erro e fugia para não detonar uma bomba que carregava na bolsa, escondida no bolso secreto, junto com poemas obscenos e um lado mesquinho de si.
A bomba era seu mais puro amor.


(imagem de Schiele)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Memórias de Jocasta: Final


Então delicadamente adormeci para sempre, sem sequer sonhar que nossa querida Patrícia teria a frieza de me dissecar e servir no jantar. Hedoni comeu com afinco sem perceber, supondo devorar alguma ave de sabor especial. Patrícia sorria alegando ingredientes secretos. Eu era devorada e sepultada dentro de meu grande amor... Em suas intenções mórbidas minha rival conseguiu me unir definitivamente a Hedoni, éramos então um só corpo e pela primeira vez pude enxergar por seus olhos. Então conheci o desprezo que tinha por ela... No último momento Hedoni suspeitou de algo, talvez sentindo que eu era também parte dele e começou a me chamar, exigindo que Patrícia me buscasse. Patrícia sorria e colocava os últimos pedaços no seu prato.
_ Aqui está o que sobrou de Jocasta.
O coração de Hedoni não suportou e senti a morte pela segunda vez. Patrícia observou o ataque como quem assiste a um show entediante e deixou-se estar abandonada na cabeceira da mesa.
Suspirou por sua eterna solidão enquanto eu comunguei plena com o amor e o infinito.


(imagem de Helen Burgos)

E aqui termina essa trágica, ou tragicômica novelinha, pelo menos surgiu de uma cena de humor negro. Dedico aos colegas da oficina de comédia, que não acompanham o blog, mas que auxiliaram na composição destes personagens, mesmo que o resultado aqui seja muito diferente da mini-cena desenvolvida na oficina. Prometo parar por enquanto com essa mania de novelas... acho que não tem dado muito certo (talvez abra uma exceção e publique aqui a novelinha Sweet Dreams que já está sendo publicada do fanzine do Goma).

domingo, 5 de outubro de 2008

Insônia Night Club

A noite era devorada devagar por uma madrugada de olheiras embriagadas. Lá fora Iansã e Xangô liberavam seu gozo em chuva. Lá dentro dos Parlapatões fui ouvir a Elke cantar... sua voz não é lá nenhum destaque, mas sua sensibilidade! seu carisma! sua extravagância! Não tem como negar o devido mérito a essa diva tão singular, que consegue ao mesmo tempo ser russa, negra, alemã, mineira, porra-loca, cult, sábia, criança, clássica, macumbeira, drag queen e ícone da cultura de massa desde os tempos do Chacrinha.
Um brinde com vinho e cachaça pra Dona Maravilha!
Evoé!

Essa canção belíssima faz parte de seu show, Do Sagrada ao Profano, é composição de Cezar Altai, seu ex-marido. Dentre as várias mensagens de seu show transcrevo o Manifesto Contra a Tirania, do século XV, de Etienne de la Boetie:


“Eu gostaria apenas de entender. Como pode ser que tantos homens, tantas cidades, tantos países suportem às vezes uma tirania que tem apenas poder que eles próprios lhe dão. Será que não sabem que não é preciso combater essa tirania: não é preciso anulá-la... ela se anula a si mesma. Basta que não se consinta em servi-la. Se nada se dá aos tiranos. Se ninguém lhes obedece, sem lutar, sem golpear, eles ficam nus, ficam desfeitos e não são mais nada; são como galho que se torna seco e morto quando sua raiz não tem mais umidade ou alimento. Decidam não mais servir e estarão livres. Não mais os sustentem e verão como o grande colosso, de quem se subtraiu a base, pode desmanchar com seu próprio peso e desmoronar.”

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 9


Então veio a hora de um jantar especial. Era aniversário de 50 anos de Hedoni, embora ele parecesse ter quase 100. Eu ainda era capaz de enxergar o brilho de sua mocidade. Patrícia prometeu um jantar inesquecível e naquele dia, pela primeira vez em tantos anos, ela acordou sorridente, brincalhona, diria até que iluminada. Pela manhã me preparou um caldo especial com aveia, canela em excesso e outras especiarias. Seria o começo de uma nova era? Eu também já estava tão velha, acho que era a anciã de minha espécie. Deste dia restou aquela manhã de um azul cintilante que emanava dos olhos de Patrícia, tão cândidos e carregados de pena, que me embalavam num afago macio. Senti amor sincero por ela enquanto o mundo se recoloria em branco, como foram as primeiras imagens de minha infância...
E a noite tivemos Civet de Lapin no jantar.

(Finalmente me apareceu um MAC postar, estou desde ontem sem conseguir acessar os sites do google, mesmo tentando em dois PCs... tive até medo ne não conseguir nunca mais. Imagem de Schiele)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Continho primaveril


Apesar de sementes tão selecionadas e de uma terra tão fértil o jardineiro não entendia porque suas flores vinham disformes. Às vezes o perfume até compensava, noutras alcançava uma cor exótica das pétalas, porém na grande maioria havia apenas a sombra de uma grandeza.
Estaria o problema nos vermes da terra escura ou no toque desastroso de suas mãos ansiosas?
Na dúvida, culpava Deus.


(imagem de Anna Pinchuk)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 8


Então vieram rapidamente os anos, e por fim a decadência de todos. Eu já não tinha a mesma habilidade do passado, tão pouco Hedoni ou Patrícia, cuja morbidez impregnava nossas platéias... por fim éramos nada mais do que um número exótico, apresentado em clubes esquisitos ou festas góticas.
Nessa época até esqueci que Patrícia tivera intenções assassinas, inclusive ela começou a cuidar de mim, como se eu fosse um passatempo de sua vida sem sabor. Então ela me alimentava, chegava a fazer pratos exclusivos para mim. Fisgou Hedoni também pelo estômago e ouso dizer até que sua dedicação à cozinha devolvia-lhe alguma alegria do passado glorioso.
Mas ela continuava impassível, sem sorrisos ou gracejos...

(imagem de Francis Bacon)


E não percam na próxima semana o penúltimo capítulo dessa novela, diria que um grande feito meu, mas não um feito literário, mas sim de minha perseverança em manter a idéia até o fim apesar da evidente impopularidade!

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cada dia


Cada dia me traz uma roleta-russa muda, sem estrondo nem clique. Mas injeta na carne uma nova bala-semente.
Irromperá em pólvora ou pólen?


(Imagem de Andy Warhol)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 7


Demorei um tempo a perceber que o ódio de Patrícia voltava-se todo para mim. Logo quando perdeu a mão tentei me aproximar, compadecendo de seu sofrimento. Mas então os atentados começaram! Primeiro foi no número do porta-jóias de louça, ela substituiu por um sem saída secreta, mas era de uma qualidade tão rude que não se quebrou com as marteladas, depois seus amigos que visitavam a casa quando Hedoni não estava e traziam rottweilers. Eu acordava com pesadelos em que sua mão zumbi me perseguia em momentos inesperados.
Com o passar do tempo fui me acalmando: crescia o amor de Hedoni por mim e Patrícia parecia desistir de suas armadilhas, até expressava indiferença. Eu continuava vendo aquela mão cadavérica, mas me convencia que era paranóia.
Não sabia da intensidade que pode atingir um ódio paciente e calculista.


(imagem de Goya)

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Desabafo


Levo uma vida sobressaltada. Nunca foi isso que quis... mas faz parte desse momento que parece ser o ápice de uma transição. Transição para melhor ou pior? Ou transito para uma vida profissional mais digna ou para mais um retorno ao zero. Levo uma sobressaltada vida tripla porque as coisas ainda não se completam. De manhã sou publicitário, à tarde professor e de noite artista. Tudo isso para quê? Continuo sem o dinheiro necessário para uma vida simples em São Paulo. No meio da noite inda tenho que suportar as vozes de vagabundos preenchendo o espaço que era dos sonhos.
Na rua, caminhando com pressa e devaneio, uma voz sem corpo me ataca:
_ o que você quer?
_ ...
_ o que você realmente quer?
_ já não te disse tantas vezes?
_ mas o que você quer?

(espero que na próxima semana a situação seja normalizada, meu cotidiano possa finalmente respirar e voltemos à nossa programação normal. Grato pela compreensão! Imagem de Fuseli)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Curtas de meio de semana V


1 – Jocasta tem uma crise de estrelismo. Acorda na segunda-feira se dizendo estressada e diz que vai aproveitar o tempo seco pra molhar a penugem na praia. Promete continuar a novela sem falta na próxima semana.
2 – Me jogo em um monte de trabalhos ao mesmo tempo. Vamos lá, agüento de tudo: alunos saltitantes, coordenadoras kickboxe, novelinha pra um Fanzine de Uberlândia (que depois será publicada aqui também), teatro do Seu Machado, roteiro para vendedores de carros. Surge então o medo das mortes irônicas:
Morte irônica I – Ser atropelado pela mãe de meu aluno.
Morte irônica II – Ser atropelado pelo carro no qual estou fazendo um roteiro institucional e me fez passar momentos inesquecíveis lendo sobre motor.
3 – Dentro da Grande Montadora Multinacional um dos homens do Marketing me lança um olhar ferino, saca sua espada samurai e me corta em pedaços que não se juntam facilmente.
4 – Surto de terça: Não vou dar aulas e passo mais momentos inesquecíveis preso no trânsito da Teodoro Sampaio.
5 – Surto de quarta: tô doente? Não tô doente? Tô no CEU? Tô no inferno?
6 – Aguardando ansiosamente o surto de quinta!

(imagem da Tarsila)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 6


Mas Patrícia nunca se contentou em ser apenas uma assistente, ela queria Hedoni por inteiro e depois de muitos números com pombas, porquinhos-da-índia, e outros animaizinhos ela conseguiu o casamento. Querendo agradá-lo ela se entregava a espetáculos cada vez mais perigosos, sentindo prazer em correr perigo real. Numa época que o relacionamento deles estava tenso Hedoni acabou desconcentrando (ou deixou que a raiva o tomasse?) e cerrou acidentalmente a mão direita de Patrícia.
Desde então ela se tornou sombria, taciturna... nutrindo um ódio profundo contra mim.


(imagem de Adriana de Castro)

sábado, 23 de agosto de 2008

Uma volta completa ao redor do sol


Nascido em mares lusitanos sob as barbas de Leão e desatinando sem pátria na casa de Virgem hoje contemplo um caminho especial que nem pode me pedir palavras, mas sim a graça daqueles devaneios que conseguiram arrancar minicontos, divagações e novelinhas, mesmo que brotando de mãos demasiadamente ansiosas...
Fast Fábula está completando um ano!
Contemplo agora tudo o que passei e que nasceu nesse tempo, sentindo que podemos destilar uma gota de poesia viva! E ainda abençoar nosso novo ciclo que como sempre promete ser lírico, intenso, engraçado, emocionante, sincero...
Muito obrigado a todos que me acompanharam durante este ano, mesmo que tenha sido apenas por um momento breve!
Ergamos a taça para um grito ao bom deus da loucura:
_ Evoé!

De presente coloco aqui um curta do Tim Burton que vale muito assisitir...

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 5


Foi no auge de nosso sucesso que apareceu Patrícia. Hedoni já tinha assumido seu pseudônimo de sucesso, uma mistura do nome do grande Houdini com sua própria natureza hedonista, já que deixara para trás seus valores conservadores e passara a degustar as delícias da boemia. Entregava-se loucamente às festas, aos entorpecentes e às fêmeas de suas espécie (na sua maioria vadias sem graça). Eu não ligava muito para elas, nem nutria ciúmes, porém percebi que Patrícia era diferente. Ela apareceu silenciosamente num sarau libertino e assim que pôde trancou-se com ele no quarto, realizando um número bizarro de ilusionismo erótico com pombas. Estando ali por acaso acabei obrigada a assistir, tentando ainda afugentar as malditas pombas que atacaram minha comida.
Então, para minha desgraça, ele inventou de contratá-la como sua assistente.

(imagem de Di Cavalcanti)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Toni & Berto



encomendado por Fábio

Você está vivendo no lixo... dizia Toni na cara de Berto, que nem se importava. Mas tão-pouco Toni também se importava e apenas repetia aquela frase como o refrão inevitável de uma canção vadia. Toni vestiu-se impecavelmente, mesmo que fosse para visitar aquele buraco podre. E era assim que o próprio Berto se referia à sua casa quando abria sua porta sorridente: bem vindo ao buraco podre. Naquela manhã um sol árido incidia em todo o lixo, restos de vômito e merda de maneira que o fedor ardia nos raios cobertos de moscas gordas. E ainda havia o perfume adocicado de Toni, que coroava o ambiente com o toque supremo de náusea. Berto vomitava mais do que o costume, a ponto de tanto ele quanto Toni se surpreenderem com a incrível capacidade daquele corpo em regurgitar lixo.
Toni o ajudava a se erguer, e mesmo com roupas tão alvas abraçou o amigo.
_ E vim aqui pra passarmos uma manhã agradável...
Dizia sentindo aquela sujeira pegajosa fazendo parte de si. Teve até um sobressalto porque até então nunca permitira que a sujeira de Berto o tocasse. Mais que isso! Naquela hora ela fazia parte de si, sentindo-se unido ao amigo quando recebeu a última golfada do vômito em seu peito. Era quente, intenso e com um cheiro inebriante de vinho barato.
Berto tentava manter-se em pé e sorriu com fraqueza, deixando que Toni o conduzisse à banheira, tirasse sua roupa, abrisse a água quentinha e ferisse vagorasamente sua pele com riscos de faca. Ele não sentia dor, mas sim pureza por esquecer as outras feridas já infestadas de pus seco e desamparo. Toni arriscou vários lugares até finalmente encontrar o ponto ideal na extremidade do pulso esquerdo do amigo. Então delicadamente raspou também o seu e uniu as feridas.
Ambos acharam bonito ver o próprio sangue se emaranhando com o do outro, depois pedaços deles que também se misturavam, até que se deixaram levar por uma alegria boba ralo abaixo.




(imagem de Schiele)

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 4


Ah... então vieram as luzes da ribalta, a época de ouro. Hedoni e eu éramos incríveis, impecáveis! Ele trocou num lampejo seus estudos e o sucesso veio como mágica. Criávamos juntos e cada vez eu me tornava mais atraente e hábil em meu número de desaparecimento. Tanto que já vencera lugares muito mais difíceis do que a tradicional cartola. O que mais gostava era de quando alcançamos a destreza do número do porta-jóias. Ele me colocava dentro de um pequeno porta-jóias de louça, arregaçava as mangas e martelava com violência.
O objeto era estraçalhado enquanto eu tinha que fugir veloz para meu esconderijo íntimo... e pouco depois ressurgia, no topo de sua cabeça.
Tínhamos uma queda pelas cenas perigosas!


(imagem de Sir John Tenniel)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Cada louco


E hoje, que me liga um homem todo cheio de polidez, me chamando de Senhor Professor, dizendo ter um violino de 150 anos e questionando se tenho interesse em comprar...

Cada uma!


(imagem de Juan Gris)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 3


Sim, eu era tão pequena ainda quando Hedoni me colocou na cartola pela primeira vez. Ele nem pensava em ser mágico ainda, chamava-se José Acácio e fazia faculdade de agronomia. Um dia, numa festinha qualquer, por ter uma tenra coelhinha em casa, resolveu brincar com aquele número clássico de tirar o bichinho da cartola. Ele nem tinha cartola também e meteu-me num chapéu coco improvisado. E o número foi perfeito, mas graças a mim. Ele ainda não tinha arte e eu que tive que fazer todo o trabalho sozinha. Tenho muito orgulho de ter sido sua grande incentivadora.
Ah, se Patrícia pudesse ter compreendido isso: Hedoni e eu sempre fomos a mesma alma.

(imagem de Paul Sydney)

terça-feira, 29 de julho de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 2


Na casa de Hedoni fui descobrindo os recantos e reentrâncias do mundo, onde tinha muito espaço para correr e me esconder, sempre levando meu amado a um adorável jogo de esconde-esconde. Sentia alegria e emoção em vê-lo me chamar com a voz fanhosa e desesperada. Nesta época ainda não havia tantos bichos, nem crianças, nem Patrícia. Em nossas primeiras noites juntos eu dormia a seus pés e pouco a pouco fui subindo, até que passei a dividir seu travesseiro, alcançando a parte mais alta de sua cabeça... aos poucos foi percebendo que ali seria a porta de entrada para meu verdadeiro lugar no mundo: o fundo falso de uma cartola!

(acho que já vou assumir que o dia desta novela não é na segunda, mas na madrugada de segunda para terça... imagem de April Buckley)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Ciranda: Syd


Não tinha paciência para bajuladores, mas quanto mais os repudiava mais eles pareciam infestar seu reino. Era uma vida difícil a de Syd, por lidar o tempo inteiro com michês, prostitutas, traficantes, cafetões, eventualmente com os próprios clientes e todo o tipo de gente sórdida, louca e desiludida. Rapidamente aprendeu que a frieza e a impiedade eram suas únicas armas possíveis naquele império que construirá com mãos quase limpas. Aprendera a não se sujar com o sangue de vagabundos. Quando já tinha todas as marionetes que precisava aquela frieza e impiedade contaminaram também sua alma. Passou a sofrer da escravidão que sua própria máscara impunha.
Então surgiu Teodoro, a única pessoa capaz de despertar-lhe outros sentimentos e por um momento vislumbrou a possibilidade de ser uma criatura simples, anônima e livre, capaz de se entregar, qual uma mocinha apaixonada, a suspiros ingênuos e fragilidades.
Sofria em sua incapacidade de se deixar ser.

(Finaliza com este post a primeira rodada da série ‘Ciranda’, como podem ver o ciclo fechou. Agora darei um tempinho para iniciar a segunda rodada, afinal, já inventei de começar uma novela nova e preciso também pensar melhor nos caminhos que essa roda insólita tomará. Mês de Agosto é aniversário do Fast Fábula e de presente para vocês terei uma dedicação especial aos pedidos da promoção deste ano. Aguardem que coisas virão!)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Memórias de Jocasta: Capítulo 1


A vida começou como um bolo esbranquiçado. Sim... acho que essas são minhas lembranças mais antigas: Um amontoado branco de textura fofa misturado a um fedor de vegetais apodrecendo. Imagens baças e difusas são a única coisa que me vêm antes da mão de Hedoni, uma mão cálida de onde era possível admirar o mundo inteiro. Sentia-me forte e protegida vendo tudo lá do alto. Nem mesmo minha mãe e meus irmãos sobreviveram àquela mão mágica, cuja paixão me levaria a glória e a ruína.
Mas ainda falo do começo.

(Próximo capítulo virá na próxima segunda-feira)

domingo, 20 de julho de 2008



A incrível história de uma vida de glória e tragédia.

Inspirada na esquete teatral criada coletivamente em um workshop sobre comédia Fast Fábula tem a honra (ou a cara-de-pau) de apresentar:

Memórias de Jocasta

Folhetim novelesco em N capítulos

Toda segunda-feira até a meia noite.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

A eterna angústia urbana


Vejam como este trecho de ‘O Idiota’ de Dostoievski, de 1867, parece ter sido escrito por um cidadão da paulicéia atual:

“Eu não conseguia suportar aquela gente naquele corre-corre, naquela agitação, eternamente preocupada, lúgubre e alarmada, que passava ao meu lado no vaivém pelas calçadas. Por que aquela eterna tristeza, aquele eterno alarme e agitação, aquela raiva lúgubre (porque essa gente é má, má, má!)? De quem é a culpa se eles são infelizes e não sabem viver?"


E por falar em corre-corre a correria desta semana por causa do workshop me impediu de dedicar ao blog, mas há um fruto de um dos exercícios realizados que pretendo desenvolver em conto pra vocês.

Prometo, sem delongas, este texto publicado até domingo!


sexta-feira, 11 de julho de 2008

Ciranda: Laura


Houve uma época que Laura acreditou viver em pleno desastre. Como se tudo o que construíra houvesse desmoronado, caindo irremediavelmente em perdição. Sua ferida sangrava? Depois do susto descobriu que sim, que sangrava, mas que não havia mais o espinho. Então se descobriu de tal maneira livre e plena que nem reconheceu sua imagem remoçada no espelho. Um monte de sentimentos meio mortos voltavam a correr e brincar como criancinhas alegres. Era tanta dádiva que se sentiu por um momento acuada, antes que a revelação viesse em forma de devaneio: estava fadada a semear milagres.
Olhou para seu ódio embatumado e resolveu que era hora da redenção. Pegou sua lista negra e começou a procurar por todos seus antigos desafetos. Inevitavelmente pensou em Syd.
_ Hora de também retirar um grande espinho.
Disse a si mesma enquanto já começava a telefonar.

(Agora uma pequena indagação, só por mera curiosidade... existe alguém que está acompanhando esta série? Imagem de Max Ernst)

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Notícias

Mais um desaparecimento do blog devido a uma operação de extração de dentes de Siso. Mas passo bem e teremos postagens fresquinhas até no fim-de-semana. Já aviso que semana que vem provavelmente será uma semana difícil, mas por uma boa causa. Fui selecionado para outro workshop de dramaturgia do SESI, desta vez sobre comédia, com Mário Viana. Espero que todas essas seleções e oficinas indiquem meu futuro promissor nesta área.
Abraços!


(de presentinho para o momento deixo esta pérola: Nara interpretando Joana Francesa)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Tolo de Ouro

Tive um companheiro humano. Era um homem de um metro e oitenta e orelhas arredondadas que a partir de uma manhã cinzenta passei a bisbilhotar por mera curiosidade. No começo eu me divertia trocando seus objetos de lugar. Ele nem sonhava com minha existência! Depois fui tomando compaixão por aquela criatura grande e desengonçada. Muitos humanos não entendem, mas é assim que nós duendes começamos a fazer amizades. Um dia chegou o momento de me apresentar e trouxe um punhado de boa sorte como presente. Naquele dia ele ficou muito feliz e ganhou boas rodadas de pôquer. Então descobri que ele era um viciado em jogo e bebida. Comecei a ajudá-lo para que não perdesse os limites com o álcool nem fizesse apostas erradas. No começo ele era atencioso e me respeitava muito, mas logo me cansei daquelas noitadas esfumaçadas. Ele exigia que fosse sempre com ele e quando relutei se tornou violento. Uma vez até me aprisionou numa gaiola, deixando-me na varanda, onde gatos famintos me rondaram ávidos. Ele então roubou meu chapéu e minhas botas para que eu nunca o abandonasse. Mas houve uma oportunidade, numa noite que quase desencanei de meus pertences. Ele já estava bêbado quando apareci. Ajudei-o nas melhores jogadas como sempre fizera, sem descumprir minha promessa, porém não alertei quando à bebida. Assim que ele caiu os outros jogadores se encarregaram de saquear seu ouro. A mim só interessava meus objetos roubados, cuidadosamente escondidos no bolso interno de seu casaco.
Corri feliz e livre como nunca naquela noite.


(imagem de Botero)

terça-feira, 1 de julho de 2008

Cisma de junho


Sempre tive a impressão de que junho é um mês sem lembranças. Essa sensação me veio enquanto pensava no ano passado, buscando reviver as marcas juninas.Tentei até lembrar de outros junhos e o vácuo persistia. Estranho! Logo eu, que estou tão acostumado a lembrar bem dos fatos e encaixotá-los precisamente no ano e mês que ocorreram. Mas neste ano fiquei mais atento e descobri que coisas incríveis acontecem em junho e talvez eu tenha só uma cisma (ou alguma confusão dos compartimentos de minha cabeça que acaba encaixotando junho e julho na mesma gaveta).
Em junho deste ano: Assisti filmes maravilhosos como My Blueberry Nights do Kar-Wai e A Hora do Lobo do Bergman, venci uma promoção no blog da Andréa Del Fuego e vou receber três livros autografados, tive momentos de Afrodite na performance que realizei junto com os colegas de teatro vocacional e ainda consegui dar uma boa guinada neste blog... vamos torcer agora para que os bons ventos continuem, e que julho não tenha invejas de seu irmão gêmeo.
Deixo de lembrança a imagem de Botticelli que fez parte do processo criativo de nosso grupo de teatro... uma alegoria da primavera em pleno inverno.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Fumaça fria


encomendado por um bruxo doido

Essa história começa com uma maldição! Teria apenas dois dias para escrever esse conto senão morreria. Seria apenas uma praga? E por que não atender também as encomendas malditas? Então que venha uma personagem maldita: É uma mulher de olhar vago e intenções bondosas chamada Luana. Era o primeiro dia de inverno em São Paulo, num ano em que a estação entrou com garras ávidas e ela sentiu um ar envenenado vindo com o vento. Para livrar seus filhos daquele mal encheu a casa de plantas, entupiu-os de remédio e cerrou definitivamente as janelas. Pensando no natal ela passava seu tempo esculpindo um delicado presépio de biscuit. Quando já quase alcançava um azul celeste magnífico no manto de Maria percebeu que já não havia mais verde, suas plantas se tornaram um amontoado de galhos secos. Lembrou ainda de seus filhos, que já não acordavam há dias.
_ Essa fumaça gelada...
Disse a si mesma num suspiro resignado e deixou finalmente que um raio de sol entrasse.
Com cuidado colocou Nossa Senhora pra secar.


(imagem de David Linch)

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Ouro de Tolo


Tive um companheiro duende. Era um homenzinho de vinte centímetros e orelhas pontiagudas que a partir de uma manhã cinzenta passou a me bisbilhotar. Pouco a pouco palpitava em meu cotidiano e finalmente tornou-se meu grande conselheiro.
Uma de suas principais funções era me avisar quando estava passando o limite na bebida e dar um mãozinha na hora de correr riscos. Noite passada foi assim: era uma rodada de pôquer com apostas altas e muito álcool. O duende demorou um pouco para aparecer e eu já quase saía do jogo, mas na última ficha ele chegou com seu sorrisinho de curinga e a sorte inverteu, mesmo que não tivesse nenhuma carta que prestasse era só seguir suas dicas de blefe.
_ Pode apostar mais alto... Hoje é noite de comemoração!_ ele dizia.
E por fim estava já tão descontrolado e eufórico que não percebi a sutil traição de meu amigo. Apenas sei que acordei de ressaca, sem saber onde dormia e tão pocuo lembrar o fim do jogo.
Só sei que o espertinho fugiu com todo o ouro enquanto eu roncava um sono pesado de bêbado.

(e mais um Goya pra vocês)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Ciranda: Lúcio


Lúcio rapidamente se acostumou à corrente, afinal, ele e o mundo estavam já cansados um do outro. Portanto a vida era mais cômoda estando acorrentado à cama da amante, que lhe fornecia amor e proteção. Com o laptop no colo ele podia tranquilamente espiar o mundo no aconchego de não fazer parte dele. Sentia-se então mais poderosos que nunca, ainda mais intocável, limitando-se a fazer suas transações pela rede. Às vezes perdia toda sua noção de tempo, entragando-se a uma paz indizível na sensação de que passavam anos sem que visse o rosto de alguém. Mesmo o frio aço da corrente, que pouco a pouco começava a fazer parte de sua carne, tanto que já era capaz de sentir coceira nos grilhões.

Recebeu poucas mensagens de Laura nessa época, nada muito além de xingamentos histéricos e ameaças que só poderiam provocar risadas, afinal, também o nome dela não podia ser mais do que uma palavra qualquer, rabiscada no cabeçalho do e-mail.


(na imagem um Prometeu acorrentado de autor ignorado)

terça-feira, 17 de junho de 2008

Queridos monstrinhos



Esses demônios, que assumem hoje tantas formas, já receberam tantos nomes, já foram duendes, diabinhos, sacis, ETs e quase sempre surgem do meio de sombras. O que há na escuridão que fomenta nosso medo? Será simplesmente a inquietação diante daquilo que está encoberto? Oculto? E o que explica o prazer peculiar em ver coisas estranhas? em sentir um pouco da excitação toda especial de fantasiar monstros na penumbra?
Nossos queridos monstrinhos!


(imagem de Goya)



E neste fim-de-semana assisti um dos melhores filmes de minha vida que aqui recomendo veementemente: A Hora do Lobo de Bergman. Um mergulho terrível e profundo dentro de um pesadelo... há muito que um filme não me trazia sensações tão intensas, acho que desde os filmes de terror da infância, quando o mundo ainda era tão misterioso.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O Mito das Amoras


Houve um tempo em que as amoras eram brancas,mesmo quando muito maduras cobriam a grama em flocos adocicados. Nesta mesma época viveram Píramo e Tisbe, dois jovens vizinhos e apaixonados, porém vedados desse amor por proibição dos pais. Morando em casas vizinhas, conversavam por um buraco na parede. Entre tantos lamentos e soluços resolveram uma noite fugir juntos.
Marcaram de se encontrar à noite... ao pé da amoreira.
Tisbe chegou primeiro, correndo furtiva, ocultada pela noite e por um véu. Enquanto esperava o amado viu que uma leoa se aproximava ao longe e correu para se esconder numa gruta, mas deixou que seu véu escapasse na fuga. A leoa faminta encontrou o véu de Tisbe e o estraçalhou. Quando Píramo chegou e encontrou o resto do véu de sua amada acreditou que ela estivesse morta, em desespero o jovem cravou sua espada no ventre, caindo juntos às raízes nodosas da árvore. Quando Tisbe voltou também não pôde suportar a fatalidade... retirou então a espada de seu amado e também se matou.
O sangue de ambos fecundou a terra, e as raízes da grande árvore absorveram o fluído de sua desgraça. Nunca mais as amoras foram brancas... mas vermelhas cor-de-sangue... quase negras na intensidade da história de Príamo e Tisbe que se tornou eterna.
Nunca percebeu que a amora tem um gosto inconfundível de Grande Amor?




(imagem superior de Abraham Hondius)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Cantilena torta


Se um ladrão de sonhos se aproxima nossa noite contrai um gosto inevitável de ausência, e num pestanejar o mundo já se torna dia.
Quando os sonhos nascem invertidos não há canto que tire das sereias um fedor insuportável de peixe apodrecendo.

(imagem de Magritte)

sábado, 7 de junho de 2008

Musa da vez

Queridos, estou profundamente decepcionado com este blog, não somente porque o número de postagens diminuíu drasticamente desde janeiro, mas também porque falta ficção, falta (ins)piração... claro que nem tudo é assim... tenho gostado muito da série Ciranda, e embora esteja apenas aquecendo, já tenho tido algumas surpresas com esses personagens inesperados. Parte de meu pequeno descaso com o blog é justamente a falta de tempo por causa do novo trabalho, mas não quero mais que isso seja desculpa, portanto esta é a última vez que uso isso como argumento. Tenho que aceitar minha sina de blogueiro e lutar até minhas últimas forçar para manter os poucos leitores que tenho. Então decidi que realmente vou dedicar mais, a todo custo, contando com a ajuda de coisas pequenas e fragmentos que normalmente anoto para futuros posts... enfim... vou estar sempre tentando começar histórias, mesmo que sejam aparentemente meio absurdas, claro que vou lutar para que sejam sempre redondinhas e bem acabadas, no entanto, já decidi que esse blog é um laboratório, caso contrário corro o risco de voltar a enxer a gaveta de abortos por nunca ter tempo de lapidar os textos (alguns podem levar anos neste processo).
Portanto aqui deixo a garantia de que toda a semana vocês encontrarão pelo menos duas publicações, mas vou esforçar para que sejam três, nem que uma delas seja o esboço do esboço. Quero deixar claro também que não esqueci minhas queridíssimas encomendas, porém desta vez elas estão mais difíceis, sem falar que tenho muito carinho pelos leitores que pediram para fazer uma coisa que não considere de muito valor.
Por agora deixo vocês com a divina musa desta semana... Nina Hagen... acho que ela representa alguma coisa livre e extravagante que precisa de alguma maneira sair.
Que a força esteja conosco!

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Carpe Diem ou no meu caminho tinha uma passeata



As manifestações populares de hoje parecem mais uma festinha do que uma mobilização verdadeira. Quando morava na Rua da Consolação eventualmente escutávamos uma grande agitação e corríamos pra janela: era mais uma passeata. Naquele tempo de recém-chegado a São Paulo era muito divertido observar essas coisas que a gente não vê muito no interior. E qual era o protesto do dia? Uma hora era contra o presidente, outra hora era a favor, noutra vinha uma sobre maus-tratos de animais e até passeata de anões meus amigos juram que viram.
Naquela época as passeatas estavam na moda, não passava semana sem que houvesse uma. E tanto era o clima de festa que uma coisa que a gente mais achava engraçado era ver os homens em cima do carro de som mexendo com nossas vizinhas, que eram prostitutas (como eles percebiam? Olhando eram mulheres comuns, parece que eles farejavam). No fim restava ainda um sentimento bom de simpatia com o ato da manifestação popular em si... mesmo sabendo que na prática não resolviam muita coisa.
Ontem foi diferente.
A passeata estava exatamente no meu caminho, tomando a via em que pego ônibus todo dia para o trabalho.
Greve de quem? Aumento de salários? Vigilantes?
Que nada! Alguém que tirasse aqueles baderneiros de meu caminho porque agora ia ter que pegar um ônibus na Augusta entupida e talvez até descer antes se o trânsito estivesse muito parado.
E lá iam eles... felizes... aproveitando um dia de greve.








(imagem de Tarsila)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Por onde andará Cecília?


Ibsen disse uma vez que no começo de sua carreira os personagens eram como desconhecidos e que pouco a pouco eles foram se tornando amigos que eventualmente aparecem. Estou com saudades de Cecília, ela esteve tão presente numa época e parece que resolveu dar uma saidinha à francesa. Acho que Cecília tá acanhada, deve tá dando um tempo, imagino que justamente porque ela recebeu um elogio um tempo atrás, logo ela que sempre quis passar meio discreta... embora ela saiba ser caprichosa também. Me lembrei que esse ano completarão dez anos que Cecília apareceu em minha vida, e hoje descubro o quanto ela mudou. Mudou de cabelo, de amantes, de crise, de infância e até de etnia.
Em breve será tempo de amoras, acho que será hora de colocar algumas na janela, tenho certeza que seus amigos alados e fofoqueiros levarão o chamado a um novo tempo!

terça-feira, 27 de maio de 2008

Ciranda: Martinha


Martinha brigou com o mundo e carregava consigo a mácula de não ter suportado seus papéis. Foram tantos anos desperdiçados na tentativa de ser correta, embora nunca acreditasse nessa balela. Chamava-se de hipócrita perante o espelho todas as manhãs e chorava baixinho à noite, atacada pelo sonho recorrente de estar presa: eram três correntes atadas aos membros, deixavando livre apenas uma mão ou uma perna, isso variava conforme a fragilidade da estação.
Inevitavelmente veio o surto e mandou marido, filhos e trabalho pro inferno. Todos a condenando enquanto gargalhava endoidecida, sem qualquer pudor!
Já passara quase um ano de entrega ao selvagem coração quando a vida, sem nenhuma delicadeza, mandou Lúcio, o amante, dez anos mais novo e com um cheiro sexy de danação. Mas dessa vez Martinha foi mais esperta e tratou de colocar a corrente bem apertada no pescoço dele enquanto dormia.


(imagem de Teresa Gutierrez)