sexta-feira, 30 de maio de 2008

Por onde andará Cecília?


Ibsen disse uma vez que no começo de sua carreira os personagens eram como desconhecidos e que pouco a pouco eles foram se tornando amigos que eventualmente aparecem. Estou com saudades de Cecília, ela esteve tão presente numa época e parece que resolveu dar uma saidinha à francesa. Acho que Cecília tá acanhada, deve tá dando um tempo, imagino que justamente porque ela recebeu um elogio um tempo atrás, logo ela que sempre quis passar meio discreta... embora ela saiba ser caprichosa também. Me lembrei que esse ano completarão dez anos que Cecília apareceu em minha vida, e hoje descubro o quanto ela mudou. Mudou de cabelo, de amantes, de crise, de infância e até de etnia.
Em breve será tempo de amoras, acho que será hora de colocar algumas na janela, tenho certeza que seus amigos alados e fofoqueiros levarão o chamado a um novo tempo!

terça-feira, 27 de maio de 2008

Ciranda: Martinha


Martinha brigou com o mundo e carregava consigo a mácula de não ter suportado seus papéis. Foram tantos anos desperdiçados na tentativa de ser correta, embora nunca acreditasse nessa balela. Chamava-se de hipócrita perante o espelho todas as manhãs e chorava baixinho à noite, atacada pelo sonho recorrente de estar presa: eram três correntes atadas aos membros, deixavando livre apenas uma mão ou uma perna, isso variava conforme a fragilidade da estação.
Inevitavelmente veio o surto e mandou marido, filhos e trabalho pro inferno. Todos a condenando enquanto gargalhava endoidecida, sem qualquer pudor!
Já passara quase um ano de entrega ao selvagem coração quando a vida, sem nenhuma delicadeza, mandou Lúcio, o amante, dez anos mais novo e com um cheiro sexy de danação. Mas dessa vez Martinha foi mais esperta e tratou de colocar a corrente bem apertada no pescoço dele enquanto dormia.


(imagem de Teresa Gutierrez)

terça-feira, 20 de maio de 2008

Sobre esboços e afins


Nesta semana sofri algumas contradições, ao mesmo tempo em que a cabeça parecia desabrochar fantasias faltava a energia necessária para misturar os ingredientes mágicos desta coisa que é a ficção. Uma das causas disso é porque a fatia mais gorda de minhas energias acaba ficando para o trabalho remunerado enquanto a escrita sempre tenha que ficar para outras horas.
(preciso entender também que essa é a função da insônia em minha vida, é o momento inevitável de sentar pra escrever, não para ficar revirando na cama e contando quantos gritos escuto do leão-de-chácara do puteiro pela madrugada)
Fez parte dessa peleja a encomenda que entreguei sábado, estava muito incerto quando publiquei, com a sensação terrível de que a coisa não está pronta, de que não é isso! Embora já tenha sentido essa mesma sensação em outros contos que hoje estão entre os mais queridos. A vontade de apagar o conto era forte, abortar silenciosamente o pequeno feto antes de qualquer suspiro. Depois reconsiderei, de certa forma é desnecessário, penso que a proposta do blog de qualquer pessoa que tente fazer da escrita uma prática em sua vida é criar (também) um laboratório... então porque não deixar registrada a primeira versão de um texto? mesmo que você tenha a certeza de que ele está ainda um pouco torto?
Em suma: não estou satisfeito com a encomenda “O Senhor do Tempo” e pretendo trabalhá-lo melhor, apesar de manter essa versão inicial publicada. Obrigado a todos os bons comentários abaixo e mais ainda às críticas agudas que tive o prazer de receber, embora ficaria ainda mais feliz se seu autor as colocasse aqui à vista de todos.
E para o deleite e inspiração de vossas mentes deixo aqui uma cena que mostra a feliz união de Shakespeare a Peter Greenway...




sábado, 17 de maio de 2008

O Senhor do Tempo


encomendado por Dani Scalon
Desde menino os relógios eram um mistério para ele, que passava horas tentando apreender o segredo do tempo observando os ponteiros que aparentemente estavam sempre inertes, mas mudavam de número quando não se estava olhando: o que era o tempo afinal? Por que às vezes tinha a sensação de que ele não existia? Seria o tempo escravo dos relógios?
Foi aí que começou o encantamento.
Cresceu fascinado por aquelas máquinas e começou a destruí-los na esperança de libertar o tempo, nascendo a idéia de que quem controlasse os relógios teria o poder também sobre o tempo. Pouco a pouco foi se familiarizando com os mecanismos, os formatos e até a História dos relógios o fascinava. Sua paixão maior era a delicadeza dos relógios pequenos.
Porém era muito novo ainda quando começou o tremor de suas mãos. Mesmo já dominando todos os detalhes da estrutura agora as peças escapavam-lhe lépidas. Desesperado foi buscar a cura daquele tremor e descobriu que era apenas o começo, estava com uma doença degenerativa que lhe tiraria a vida antes do tempo.
Se antes queria libertar o tempo agora nutria uma forte revolta, sentiu-se traído e empenhou seus conhecimentos para fazer o esboço de um relógio perfeito, que conseguiu desenhar com a ajuda de outras mãos e multiplicar, criando a maior fábrica de relógios de seu reino. Todos os cidadãos tinham um de seus produtos que já carregavam o germe de sua grande vingança: Na mesma noite que morreu, já envelhecido e incapacitado apesar de tão jovem, nem precisou de um último gesto para desencadear a revolução dos relógios.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Ciranda: Nádia


Ela só queria dormir, mas todos os olhos que pousaram sobre ela a condenavam. Lembrava muito bem do desprezo dos enfermeiros e do próprio médico, que insinuara o fato de que duas emergências tiveram que esperar por causa de uma menina mimada. Na hora ela tentou falar que não quisera se matar, mas sua voz não saía no meio da maciez de todos sedativos que tomara. Apenas ouvia ao fundo a voz pastosa se distanciando, sentindo uma pequena revolta por não poder se defender, por não poder gritar que já estava há uma semana sem dormir e sua cabeça elétrica, para seu desgosto sempre tão cheia de vida, pedia inutilmente por algumas horas de sono.
Martinha, a mãe de Nádia, veio correndo com a notícia, estivera trêmula na direção e quase bateu o carro duas vezes. Imaginou a manchete: Filha tenta suicídio e mãe morre ao caminho do hospital. Fez sinal da cruz duas vezes esquecendo-se que não acreditava em qualquer deus. No hospital deixou a antiga boneca da filha aos pés de seu leito e chorou muito, desabafando uma declaração de amor que era esperada por anos.
Mas Nádia não ouviu, dormia calma e leve como uma menininha.


(a pintura chama: Garota triste com garras e chapéu, mas não descobri o nome do autor)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Curtas de meio de semana IV


1 - Como sempre enfurecido com trânsito, com meu computador à beira da insanidade, com o imposto de renda, o auxílio moradia de 3.800 reais dos senadores... mas isso não fica assim não, o mundo que me aguarde! Esperem só eu abrir minha própria ONG.
2 - Exercito uma espécie de meditação transcendental ao tentar controlar criancinhas apenas pelo olhar calmo e a voz em pianíssimo. Eles podem quebrar o mundo que fico tranqüilinho tocando flauta. A propósito, estou pesquisando técnicas pedagógicas diversas para aplicar em meus pimpolhos, penso até em experimentar hipnose e outras metodologias alternativas, alguém pode me socorrer?
3 - Entro em contato com o único membro real de minha banda imaginária. Revisamos nossa maravilhosa carreira pelo mundo dos sonhos. Será que dá certo tentar uma turnê por aqui? Será que ela não vai perder um pouco de seu charme ao deixar de ser banda imaginária e se tornar real? Aguardem queridos fãs (imaginários também) SPLEEN vem aí!!
4 – E por fim contemplando placidez e beleza na matéria mole do tempo, em transformações sutis de uma coisinha que deixa estrelas nesta rua. Um ano pode ser assim, tão eterno!

domingo, 4 de maio de 2008

Ciranda: Victor


Victor não poderia estar mais vivo que naqueles tempos.
Deixara o mundo parado e estático de sua cidadezinha natal para confrontar o fascínio e a liberdade de viver numa cidade de dimensões infinitas, como se a gigantesca mão de Deus o colocasse delicadamente na borda daquele abismo e dissesse:
_ Toma! Esse mundo é todo seu!
Então delirava na ânsia de que poderia ser qualquer coisa: louco suburbano, mendigo, gênio ou bon-vivant pervertido. Era uma tela branca e luminosa que pouco a pouco se tornava um daqueles seres: tão sombrios, desencanados, drogados, multi-sexuais, extravagantes, tão repletos de tatuagens, piercings, frustrações e melancolia, brindando a degustação dum luto irremediável.
_ Mas por que esse choro?
Perguntou numa noite para Nádia, que vez por outra trocava sua natural apatia por crises de choro convulsas que vinham sem previsão, às vezes em momentos pouco apropriados, como o auge do desvario de festa em que se encontravam.
_ Não sei, as coisas que doem em mim já não tem nome.
Disse ela enquanto uma gargalhada estridente irrompia numa das muitas vozes do grupo:
_ Hahahahahaha... só a Nádia mesmo...

(imagem de Mondigliani)