sábado, 29 de novembro de 2008

Queridas Quimeras

Antes de ter musas, tenho quatro Quimeras gordas e monstruosas. Frequentemente escancaram seus dentes de leão, cobra, bode... até dragão! Amo essas malditas, mesmo quando tomam a rédea de minha vida, embora chegue também a um ódio louco quando me embaçam a realidade. Em momentos cruciais soltam rosnados de tremer terra! Em momentos pacatos palpitam muito enquanto disputam o destino para seu lado... algumas vezes até se ajudam, mas sempre brigam muito e falam demais.
Cada uma tem cerca de três cabeças.


(continua)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Agnes


Com todo coração Agnes sempre preparara os perus para as festas de sua família. E mesmo depois que os antigos se foram ainda restavam seus filhos, que cada vez mais subiam na vida. Em meio a seus títulos de nobreza ela se contentava em agradá-los servindo anonimamente em seus jantares. Humildemente foi amolecendo as carnes de outros tempos, adocicando os temperos até que, sem que ela mesma notasse, entregou-se inteira e voluptuosa como prato principal.


(não sei a autoria da imagem)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Abstraindo


As melhores aulas geralmente são aquelas que vêm da pura espontaneidade das crianças. Isso aconteceu esta semana, quando uma aluna ficou intrigada com a pintura abstrata que ilustra a capa de meu caderno de anotações. Rapidamente mais alguns aglomeraram em torno, na tentativa de decifrar o desenho:
_ Eu não vejo nada!
_ Eu vejo um peixe...
_Tem uma menina...
E do nada a um conjunto de figuras lançadas e interpretadas de diversas maneiras eis que vem a grande conclusão:
_ Tem o mundo aí!
E estava todo ali, com florestas praias e até a China. Prontinho para quem quisesse enxergar.


(Imagem de Miro, que não é a que esta na capa de meu caderno, já que esta não tem a referência do autor para que pudesse colocar aqui pra vocês)

domingo, 16 de novembro de 2008

Espirolando



Este vídeo (de Marcel Duchamp e John Cage) não se trata de uma tentativa de hipnotizar você caro leitor, antes disso pretendemos um tratamento para a lucidez... concentre-se nas espirais e deixa sua mente livre... percorrendo aquelas escadarias sem fim do castelo de dentro.
Não tenha medo de abrir portas pelo caminho.
Caso durma, me mande carinhosamente um souvenir da terra nova que encontrar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Café para atrair musas

Para Ana (mas não para Ana!)

Começamos num café de fim-de-tarde: mastigamos pãezinhos, bolo, geléia de jabuticaba, a própria língua portuguesa com temperos agridoces, algumas pequenas neuroses cotidianas e ainda Department of Eagle, Regina Spektor, Air e um ensopada com um toque húngaro.
E finalmente nossas amigas musas foram se achegando, tá certo que são umas musas um tanto destrambelhadas, mas são generosas. A mais caprichosa delas olhou para nós e disse incisiva:
_ Quero ver se desta vez sai, hein...
(e quem somos nós para fazer desfeita com ela?)

sábado, 8 de novembro de 2008

Terceiro Ato


encomendado por Maria Cláudia
Há muito desconfiava que me preparam uma armadilha. Desconfio desde o primeiro momento que olhei fundo no lado escuro e pude ver os vultos. Seriam fantasmas ou alucinações? Espíritos inquietos que assistem minha vida e murmuram entre si, compartilhando seu desejo por sangue. É deles que emergirá minha morte, não de meus sete ministros, que agora me chamam a atenção, tentando afastar-me desses pensamentos e distrair-me da estranha realidade que se insinua, numa cena tantas vezes repetida. Eles propõem um brinde e sorriem, mas apesar dos dentes arreganhados seus olhos denunciam o sorriso falso, olhos que não conseguem esconder uma ânsia desesperada. Somente agora posso dar conta de que tudo ao meu redor é verdadeiramente falso, até mesmo esse corpo que não é meu.
Esse é o momento em que a tragédia se concretiza, quando a terrível fatalidade tramada pelo sentimento mesquinho de um desconhecido recai sobre mim. Tudo é controlado para que esses olhos estranhos na escuridão acreditem numa lenda tola, como essa luz que se afunila sobre o cálice reluzente... deveria beber o brinde envenenado e me entregar a essa vida que não escolhi?
Corro para fora desse mundo artificial, enfrento esse espaço obsceno sem medo de atravessar o lado escuro... ignoro a surpresa dessas pessoas que não podem entender minha verdadeira tragédia. Fujo através da cidade para me jogar da primeira ponte que encontrar, assim não me mato sozinho e levo comigo o corpo infame desse ator que me interpreta.

(imagem de Joan Ponç)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Manhã turva de Fel


Um cavalo descomunal e terrível saltava enfurecido na entrada de sua casa. Vários homens pulavam em seu dorso tentando contê-lo, mas eram atirados com violência entre coices, saltos e relinchos bestiais. Fel contemplava amedrontado da janela, sem suportar sequer o olhar do animal. Só percebeu que Cecília estava ao seu lado quando um homem finalmente conseguiu alcançar o dorso do bicho e lhe aplicar uma injeção.
_ Pobrezinho... disse Cecília vendo o cavalo desabar.
_ Como assim? Olhe...
Respondeu indignado apontando a face retorcida de bicho louco, que mesmo já sendo arrebatado pelo sonífero ainda tentava morder alguém com dentes estatelados.
Aí acordou atônito e suado, com medo daquele bicho que pulava incontrolável em algum lugar dentro de si.
Surpreendeu também a ausência de Cecília em sua cama, e na busca por algum vestígio somente encontrou restos de sonhos ainda vivos entre um pouco do cheiro dela.
Suspirou a falta de um bilhete qualquer.

(Apenas para avisar a possíveis leitores que chegaram recentemente, esse post faz parte de Histórias de Cecília, não é uma novela, mas uma série de histórias e fragmentos envolvendo esta personagem e os que a rodeiam. Para conhecer o conjunto é só ir no cardápio. Imagem de Dali)