segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Antologia Fast Fábula


Como último post do ano aqui decreto minhas férias do blog... desejo a todos vocês um 2008 pleno!
E como vou estar sumido até mais ou menos dia 15 (embora espero que me venham surtos incontroláveis de inspiração...) publico aqui a primeira antologia Fast Fábula, uma seleção que faço dos contos que mais gosto. Assim, quem já freqüenta este espaço pode recordar, e quem é novo pode ler diretamente o que temos de melhor a oferecer:
1 – O Sonhador
2 – Poema de vento e mar
3- Tio Ludovico
4 – Era uma casa
5 – Um Fantasma
6 – Uma menininha triste
7 – A mão decepada (com o final alternativo)
8 – A Outra
9 – Cecília e os Anjos
10 – A casa de doces
11- Pães-de-queijo para Regina
12 – Histórias de mamãe lobo
13 – 200 Gatos
14 – Marcus Casanuova
15 – A bailarina aprisionada
Obrigado pela companhia de todos! Prometo ficções para 2008, se serão boas... só os deuses sabem, mas garanto que haverá esforço e dedicação sincera. Aliás, fiquem atentos, um romance está sendo escrito aqui... e como se trata de um processo em construção há espaço para interação. Quem interagir pode ir pra futura dedicatória.
Grandes Abraços
Até!
(e como última mensagem termino com esse clipe tão tocante do Sigur Ros)

sábado, 29 de dezembro de 2007

Arabescos


para Fabiana e Amadan
Havia tanto de Fel e Cecília nos discos que em algumas noites não conseguiam escolher o que ouvir! Talvez Piazzola? Como na primeira noite em que ela estivera lá e revelara como seus tangos a faziam arrepiar! Arrepiar-se onde não devia! Uma música que faz amor lento, dedicado, repleto de paixão sincera. Ou o velho Villa? Que tanto ouviram e poderia levá-la a outros estados, a vôos em florestas de araras gigantes ou mergulhos em pântanos lamacentos, mas cheios de tuiuiús solenes e Iaras de cabelos negros. Quem sabe um pouco de Stravinsky? Um pouco de sua selvageria orgânica, como na noite em que ela dançou bêbada no quintal adorando a terra, o céu, as estrelas, o infinito da noite. Música que vinha emaranhada com os sons mais profundos de si e despertava-lhe risos de louca.
Quando Cecília partiu a música perdeu o sentido para Fel...
Restou-lhe naquela época um silêncio tão ausente de sensações que nem mesmo a solidão doía.
Perdia então algumas noites tentando inutilmente escolher a música para o dia em que ela voltasse.


(Esse post já foi publicado na versão anterior do meu blog, era um dos que não trouxera para o novo, aqui em baixo segue o comentário feito por Amadan, um leitor português que infelizmente sumiu... o comentário dele dá uma dimensão e uma beleza ao texto que me surpreenderam:

Amadan disse:

A música era o ornamento de Cecília. Querendo-a bela, Fel tantava ornamentá-la com o que melhor e mais bonito conseguia encontrar. Se fosse ao contrário, ser Cecília o ornamento que daria mais beleza à música, esta não se teria silenciado para Fel, teria fica só mais triste. Belas imagens que são uma viagem para um estado melancólico. Belo texto. Um abraço.)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Todas as mulheres do mundo


para Aninha

Mariana era ciumenta e se conhecia bem o suficiente para saber que sofreria a vida inteira por isso. Era uma mulher muito compreensiva, e apesar de sentir o sangue ferver a qualquer sinal de que seu marido detinha os olhos em outra, respirava fundo e lembrava a si mesma da inconstância do desejo dos homens.
No começo do namoro brigara muito, dera alguns pequenos escândalos, algumas unhadas discretas, mas aos poucos foi se controlando até numa noite, depois de vê-lo entrar em transe simplesmente porque se vestira de cigana, percebeu que seria a esposa perfeita se pudesse lhe proporcionar o sabor de todas as mulheres do mundo.
E ele ficou surpreendido com essa nova realidade, cada dia encontrando uma outra habitante no corpo de sua esposa. Às vezes amanhecia com uma colegial safada, almoçava com uma guerreira oriental, tomava café com uma bailarina e por fim dormia com uma senhora inglesa. Já eram tantas Marianas ou Anas ou Marias que ele se sentia confuso.
Agora continua olhando sorrateiramente para as mulheres à sua volta, que se misturam às que Mariana representa, numa sutil nostalgia e esperança de reencontrar a moça ciumenta com quem se casara.


( Desculpem passar uma semana sem publicar, sabe como é, festas de natal somados ao fato de que na casa de minha mãe tenho que dividir o uso do computador, mas prometo ainda dois posts esse ano. Imagem de Max Ernst)

sábado, 22 de dezembro de 2007

O Império Submerso


David, meu querido David...

eu tentei perseguir os coelhos marrons deste império (que os péssimos tradutores chamaram de onírico e que eu chamo de submerso), mas acabei me perdendo logo no começo do caminho. Só me resta agora afogar minhas mágoas no Clube Silêncio e esperar que Rebecca del Rio venha esta noite para que eu entenda de uma vez por todas que:
_ NÃO HÁ BANDA!
David, entenda minha desilusão adolescente: Quando finalmente posso assistir uma obra sua no cinema não se trata exatamente de um filme para a grande tela. Aos meus olhos as imagens de Inland Empire são mais apropriadas para a tela do computador mesmo, e assim quero revê-lo, com direito a devidas pausas para café e debates calorosos. Aí vou debulhar o filme devagar, certo de que meu coelho branco achará seu caminho perfeito. Mas por enquanto continuo com a chorona... uma imagem definitiva!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Quase


Por toda a noite os três bordéis do quarteirão brigavam por atenção.
_ Hoje não paga entrada...
_ Hoje não paga a cerveja!
_ Hoje só tem moça virgem.
E a rua se dividia entre boêmios perdidos na madrugada de quarta-feira e os moradores da região que tentavam dormir. Entre eles havia um senhor não muito paciente e que cada noite polia sua arma alimentando o sonho de calar aqueles galos presunçosos. Naquela noite, rodeado por problemas no trabalho e devorado pela insônia, o homem foi para sua posição privilegiada no sétimo andar e começou a mirar em silêncio...

_ Uni... duni... tê...
E o tiro escapou num estrondo quase ignorado em meio à barulheira de buzinas, encontrando a carne de Margarida ao invés de seu alvo. Logo a rua fervilhava de viaturas e vozes que tornaram a noite do atirador ainda mais angustiante, enquanto a moça caída no chão sentia-se querida por se tornar o centro das atenções daqueles olhos carinhosos, até esqueceu a dor e sorriu para o anjo da morte, mas preferiu flertar com o belo enfermeiro, com quem teve um amor intenso ainda no hospital.
E ele quase foi o homem de sua vida, mas nunca mais ligou para ela quando ganhou alta.
Margarida foi muito infeliz.

(imagem por Charles Domsky)

domingo, 16 de dezembro de 2007

A Alma do Vinho




“Sempre um cálido peito é um sepulcro sem preço
Em que eu vivo melhor que nas frias adegas.”
Baudelaire

(esse filme foi uma criação conjunta, mas houveram algumas funções especiais em sua execução. Câmera por Rodrigo Tibyriçá, mãos por Vivi Amodio, contra-regragem por Gabriel Küster e violino por Celso Amâncio. A edição ficou por conta de Ana Machado. Comecei a produzir um texto para ilustrar o vídeo, mas preferi deixar apenas o Baudelaire, assim não interfiro na interpretação tão íntima que podem ter. Espero logo postar mais filmes!)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Com novos olhos


Depois do jantar todos riam e bebiam fartamente quando o Mestre de Cerimônias propôs que cada um experimentasse a peruca escarlate, tranformando cada rosto em caricatura inesperada:
_ Olha parece a Elke Maravilha...
_ Nossa... é o Roberto... igualzinho!
_ Tá parecendo secretária de filme americano.
De repente chegou a vez da Lisa, que estava distraída conversando outros assuntos, mas já causava expectativas devido a seu semblante naturalmente cômico.
E qual não foi a surpresa!
Lisa ficou linda: as linhas de seu rosto destacaram e os olhos revelaram-se de um desenho tão belo, porém nunca percebido antes daquela franja curva e do contraste que o vermelho-sangue provocava. Até seu corpo tornou-se gracioso e a moça não entendia o deslumbre de seus amigos. Correu ao espelho e confirmou boquiaberta:
_ Sou outra pessoa...
Despedindo-se apressadamente partiu sem dar explicações. Seguiu noite à fora dirigindo inquieta, tentando um diálogo com aqueles olhos arredios pelo retrovisor.
Só quando quase amanhecia que escolheu seu novo nome.

(imagem de Modigliani)

AINDA ESTA SEMANA: um post com um curta que realizei recentemente com amigos. A alma do vinho

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Folhetim de fim de noite


Numa noite, Nanãna encontrou Cecília na contemplação do bar quase vazio e resolveu colocar a conversa em dia após tantos anos.
_ E como vão seus amores?
_ Nada muito emocionante... e os seus?
_ Querida! Estou casada com um príncipe de um reino pequeno e muito rico na Europa, ele é primo primeiro lá das princesas do Mônaco. E olha que o encontrei vagando pela rua por aqui! Ele foi criado em São Paulo porque sua mãe fugiu com medo, já que ele era o principal herdeiro da fortuna da família, ela temia por sua vida. Assim viveram anos escondidos, levando uma vida modesta, sem que ele nem mesmo soubesse do sua linhagem. Então veio a notícia de que todos já haviam se matado lá no castelo e minha sogra pôde finalmente retornar, limpar os cadáveres e colocar as mãos em seu reino. Aí nos conhecemos e agora passo meus dias mundo afora, vivendo de uma fortuna que não sofrerá abalo por pelo menos cinco gerações.
Cecília suspirou, sentindo-se decepcionada por sua falta de imaginação perante toda a riqueza de Nanãna.
Aspirou madrugada e tédio no fundo do copo, enquanto a boneca ainda falava sem parar, agora sobre a magnitude de seus filhos.

(imagem de Anderlene Gefuehl, eu acho...)

sábado, 8 de dezembro de 2007

Sobre a loucura dos escritores


Conversávamos, após uma palestra, sobre o homenzinho que fizera a última pergunta. Era uma figura patética, cheio de sorrisos meio contidos e que estava a tal ponto desesperado em mostrar sua presença que arriscou um amontoado de palavras desconexas, sem conseguir dizer nada além de escancarar sua ansiedade.
No meio dessa conversa meu colega começou a lembrar outras figuras aparentemente loucas que também estiveram lá.
_ Mas escritores são assim mesmo...
Comentei e, já no ônibus que pegamos juntos, pude ouvir os pensamentos do outro me sondando:
“Hum... você também é meio psico...”

Sob um olhar incisivo e analítico sentia que eu começava então a me fragmentar, trazendo à tona um lado meu cheio de idiossincransias. Com a sensação de pleno delito eu queria fugir da sutil metamorfose: começava a me tornar o homenzinho! Quanto mais disfarçava minha loucura mais ela se escancarava. Não tinha opções, refugiar-me num banco seria esquisito, permanecer em frente a ele implicava em tentar criar assuntos que não se conectavam, ficar calado seria pior. E de repente até meu corpo me traía em cacoetes e tiques. Por fim, mesmo quando o colega desceu a sensação de ser esdrúxulo continuou e segui pra casa fugindo do olhar de todos que cruzaram meu caminho, sem conseguir recuperar minha sanidade naquela noite.
Eu não estava mais no mesmo planeta.


(imagem de Robert Anderson)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Pequeno diálogo


Fui selecionado para uma oficina do núcleo de dramaturgia do Sesi, trata-se de uma parceria com o British Council para orientar e descobrir novos autores. O processo seletivo pedia que escrevêssemos um diálogo, de no máximo 1.000 caracteres, tendo no mínimo dois personagens, sendo estes o próprio avaliador e o candidato à vaga justificando sua participação. Agora publico o texto aqui para a apreciação de vocês.
(Qualquer semelhança com algum outro texto deste blog não é mera coincidência).


AVALIADOR
Como você justifica sua participação no workshop?
CANDIDATO
Não devo explicações. Já estou garantido.
AVALIADOR
Como pode ter tanta certeza assim?
CANDIDATO
Já vendi minha alma, fiz acertos com Mefisto e tô pronto pra uma carreira bem sucedida.
AVALIADOR
Mas se já está com o futuro garantido esse workshop não te serve pra nada.
CANDIDATO
Serve pra vocês! É uma grande oportunidade que estou dando de graça.
AVALIADOR
Como assim?
CANDIDATO
Investir em alguém que já tá com a trapaça comprada é sucesso certo!
AVALIADOR
(irônico) Ah Claro! Ótimo mesmo! Vou incentivar a trapaça e ainda ter trato com o diabo...
CANDIDATO
(interrompendo) Mas quem está com a alma entregue sou eu.
AVALIADOR
E de que vale um dramaturgo sem alma?
CANDIDATO
Fica frio, ela tá comigo até a morte, o diabo pensa em tudo. E outra, vários casos deram certo. Não conhece lá aquele violinista? O Paganini?
AVALIADOR
Sei sim! Música cheia de artifícios e vazia de sentimento...
CANDIDATO

Mas fez sucesso, não fez?

(em homenagem à Grande Dramaturgia, ilustro com Édipo e a Esfinge)

domingo, 2 de dezembro de 2007

Um sonho


No sonho que tive ia com uma amiga para uma casa de morte.
Havia apenas uma regra: nenhum além de nós dois podia sair com vida de lá. Havia sangue no chão e eu percebi nela a melancolia de quem quer suicidar... então encontramos um conhecido. Ele estava sorridente e tentava me matar enquanto escorregávamos nas poças coaguladas. Eu não tinha coragem, mas tinha que matá-lo! Atacava-o com um taco de beisebol enquanto ele apenas me fitava, ainda sorrindo, sem sofrer qualquer abalo dos golpes.
Acordei antes de efetivar o crime.


Como já disse Nietsche... quando sonhamos todos nós somos artistas perfeitos, portanto, aqui compartilho as imagens perfeitas deste artesão onírico que molda sua obra anônima com a matéria prima essencial de nossos sentimentos mais inocentes.

(ilustrando: um pesadelo de Fuseli)


Ontem uma peça que recomendo a todos: "Divinas Palavras", o melhor elenco dos Satyros numa montagem maravilhosa e perturbadora. Nesta imagem... Ângela Barros... e de nada valem as minhas palavras... só assistindo.



quarta-feira, 28 de novembro de 2007

No bar


Quando estava sozinha no bar Cecília deixava-se ter amantes imaginários. E em sua mesa de canto sentia uma alegria sutil ao constatar que também fazia parte do romance fingido dos outros. Entre as brechas de fumaça e jazz deixava fluir o jogo de luz e sombra.
_ Ah, o que essa mulher faz sozinha e calada a essa hora?
Imaginava a indagação muda dos outros, sentindo-se deliciosa e clichê. Naquele tempo não queria ainda conversar, era como se sondasse o terreno e deixava que as noites a atravessassem e a tornassem cada dia mais familiar, a tal ponto que notava uma cumplicidade na maneira que os garçons buscavam a dose de gin e em como correspondia a tímidas saudações com ligeiros movimentos de sobrancelhas. Enfim mergulhava na fantasia e adivinhava o gosto de cada um daqueles amantes hipotéticos, que até já começavam a invadi-la em sonhos eróticos: primeiro foi o guitarrista da banda de jazz e depois a mulher sombria que gargalhava com excesso de dentes.
E toda semana repetia seu rito, abraçando a infinitude de ser uma incógnita.


(Imagem de Dignimont André)

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Quem-se-quer


Estava com seus melhores sapatos e seu melhor terno quando os deuses da chuva levaram junto com a enxurrada sua dignidade...
Abrigou-se numa lanchonete próxima e viu escorrer, com a violência do temporal, o sonho de reaver um amor antigo. Era a única oportunidade para um recomeço e agora não era mais um homem belo, pontual e perfumado que deixara sua casa com uma grande certeza.
Observando o corre-corre dos funcionários da lanchonete e a tristeza de seu próprio semblante embaçado no metal velho da máquina de café expresso, resolveu que as pétalas do buquê lhe responderiam se toda ansiedade e correria valiam a pena.
E quando a última pétala desceu bueiro à baixo sentiu um calafrio bom, pediu uma dose e respirou vida nova:
Deu mal-me-quer.

(imagem famosa de Magritte)

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Violinista lá dentro



Em virtude de um teste volto ao violino abandonado e desdentado há mais de mês: renovo suas cordas, limpo o breu sujo e a velha relíquia volta a brilhar em sonoridade quase nova. Os dedos reaprendem o caminho e a dor. Em meio ao esforço de transformar carne, metal e madeira nessa música chorosa e melancólica escuto a voz fraca do violinista lá dentro!
_ Toca aquela do Mozart... ah, você ainda consegue a Romanza... um bem que podia ter aprendido o Prokoffiev...

Não é que o danado ainda respira!
Respondo aos anseios desse amigo moribundo e ele se deixa embalar no canto de sonhos esquecidos, quase ancestrais, enquanto eu mesmo me perco nessa graça estranha de contemplar o que poderia ter sido.

Em homenagem a esse momento coloco aqui uma das obras para violino que-nunca-vou-tocar que mais amo: Tzigane de Ravel, pelas mãos de Vengerov (reparem em como a música se espedaça ora em sonoridades cristalinas, ora em estilhaços pontiagudos)

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Interlúdio

Depois deste último conto que se estendeu desnecessariamente por três posts pressinto um momento de crise em minha querida máquina de fabulações. Será que minha receita de continhos fantásticos está gasta?! Pelo menos no começo eles brotavam com mais naturalidade... porém agora...
mas é como já disse alguém que não lembro: escrever se torna cada vez mais difícil com o tempo.

Esta semana começa uma fase incerta, (talvez decisiva) acredito que tente algum laboratório. Seria um prazer se vocês me ajudassem a definir este caminho, meus queridos leitores tão silenciosos... escrevo para agradar vocês, se fossem apenas pirações subjetivas não publicaria. Portanto, este pequeno escritorzinho em formação pede, humildemente, mais colaboração. Poucas pessoas tem comentado ultimamente, mas o contador demonstra que existem acessos. Não se acanhem pessoal...
E para o entretenimento de vocês aqui vai um clipe mui simpático de Chan Marshall, vulgo Cat Power.

E que a força esteja conosco!



sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Dona Carmem (Final)


_ Muito obrigada, estou quase na final do concurso de palavras cruzadas!
Era isso então minha querida inimiga? Observei ainda mais um pouco a maneira que ela enchia a mão de jujubas e amendoins, como uma menina pateta e gulosa. A quem estavam querendo enganar? Aquela não poderia ser digna nem de minha repulsa. Onde estava a mulher capaz de torturar consciências silenciosamente?
_ Você não é Dona Carmem.
_ Como?
Dei um tapa nos potes de guloseimas.
_ Onde está Dona Carmem? Não quero tratar com essa cópia barata!
Pela primeira vez em minha vida comecei a berrar tudo o que sempre desejei. Falei tão exaltado e atirei contra aquela mulher tantos insultos que ela chorava, trêmula de medo. Os olhinhos de azeitona se desmanchavam e a secretária abriu a porta com cara de susto. Os diabinhos deleitavam-se, dançando com cantilenas agudas ao redor da cabeça da falsa Dona Carmem.
Saí da sala sem dizer mais nada e segui para o RH, onde pedi minha demissão.
Mas não descansarei enquanto não colocar minhas mãos na verdadeira Dona Carmem. Sigo pelo mundo procurando o rastro de minha doce inimiga como quem busca a presa ideal. Cotidiano, carreira, negócios, futuro... o que importa? Meu único sonho é fechar meus dedos em seu pescoço e poder me divertir um pouco vendo sua face tornar-se roxa e clarear-se, tornar-se roxa e clarear-se, tornar-se roxa e clarear...
Meus diabinhos seguem atentos, prontos a me alertar se ela prepara alguma armadilha sorrateira na penumbra.

(esse conto partiu de reflexões sobre sentimentos obscuros e acabou se transformando numa coisa muito diferente do que foi pensado inicialmente. Na imagem uma bruxa renascentista de autor ignorado)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Dona Carmem (parte II)


Três diabinhos pousaram sobre meu ombro quando entrava na sala de Dona Carmem. O primeiro era o da revolta, que não parava de citar a lista de injustiças e podridões daquela empresa, e como poderia usar essas informações para chantagens. O segundo era o do assassinato, este insistia que a única maneira realmente digna de superar um inimigo era sua morte, mesmo que não terminasse impune. O terceiro era o do escárnio, que gargalhava ao ter a visão de Dona Carmem dançando pelada sobre a mesa da diretoria.
Dentro da sala ela estava absorta na tela do computador, olhou para mim sorrindo. Acho que não lembrava de vê-la sorrir.
_ Aceita uma jujuba? Um amendoim?
Diante dela havia dois potes com essas guloseimas. O diabinho número três mergulhou com vontade nas jujubas e brincava como uma criança, o número dois pousou sobre a cabeça dela e fazia sinais para que eu atacasse. Só o primeiro permanecia quieto e analítico.
_ Você sabe quem é o autor de Casa de Bonecas?
Onde ela queria chegar?
_ Casa de Bonecas? Como assim?
_ Sim... uma peça, está escrito aqui, Casa de Bonecas, cinco letras... você entende de teatro, não é?
_ Ibsen.
_ Como?
_ O autor... I – B – S – E – N
Dona Carmem anotou o nome prontamente. E porque eu respondera corretamente? Levantou os olhinhos de azeitona e estava sorridente, com uma expressão infantil e boba.
Aquela não era Dona Carmem!

(termina no próximo post, imagem de Erhard Schoen)

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Dona Carmem (parte I)

Quando fui chamado para uma conversa com Dona Carmem engoli um pouco da convulsão assassina que me tomou. Minhas mãos tremiam. Em sua maldita ante-sala observava a secretária em sua expressão plácida, mecânica, falsamente cordial. Ela estava calada, normalmente tagarelava inutilidades, mas aquele dia ela só podia estar silenciosa por um motivo: era minha demissão! Não tinha mais jeito, todos naquela empresinha de merda já sabiam de meu ódio a Dona Carmem. Durante os três anos que trabalhara ali sempre deixara uma ironia ou outra de relance, entre alguns comentários até maldosos, porém já tinha algum tempo que eu me divertia muito ridicularizando Dona Carmem para todos, até diante seus conhecidos puxa-sacos, e há muito que nem falava mais de salários injustos, horas extras mal pagas, falta de ética profissional. Nada disso, agora eu imitava o andar vitoriano dela, sua fala desprovida de paixão, os cacoetes de seu rosto no momento em que estava tensa, seu senso de humor ridículo, o colarzinho com um crucifixo romano. E cada dia crescia minha vontade de estrangulá-la lentamente, apertando seu pescoço enrugado bem devagar, sufocando-a em silêncio, observando seus olhinhos de azeitona tornarem-se novamente puros para deixar que recuperasse o fôlego. Aí repetiria a ação novamente e novamente e novamente e novamente...
_ Dona Carmem já vai te atender.
Acordei bruscamente das delícias de meu ódio e senti eletricidade percorrer minha espinha. Era o momento!




(continua... na imagem um dos dragões de Goltizius)

sábado, 10 de novembro de 2007

Sobre pele



Com o coração tão reduzido a pedaços resolveu partir enquanto ele dormia.
Pelo caminho de volta atravessava paisagens emotivas numa violência feliz! Até que na distração de deparar-se com lírios negros percebeu que algo ainda devia ser feito.
Retornou ao esconderijo e o encontrou sonâmbulo, dançando na penumbra do quarto secreto. Acompanhou seus passos, enquanto desfiava sua inocência com a fragilidade de uma bola de lã.
E costurou suas melhores pérolas no corpo dele.



(no vídeo o clipe de Pagan Poetry, Björk em um de seus momentos mais sereia...)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Curtas de meio de semana II


1 – Semana começa com uma conversa terrível com a peituda canibal. Olho em seus olhos ferozes enquanto ela insiste dizendo, com sua voz meio fanhosa, que come meus dedos para meu próprio bem.
2 – Organização do futuro! Estou pensando em abrir uma empresa de venda de projetos mirabolantes... alguém precisa de idéias revolucionárias? Tem dificuldade em engordar idéias insossas e mirradas? Por favor, contate-me! Um nó cerebral ou seu dinheiro de volta.
3 – Sentindo falta de ler um romance que não sei exatamente o que é... estou num pula pula infernal de livros e autores e não encontro o sacro-sumo que necessito. Será que é hora para eu escrever um romance?
4 – Ganho um aliado importante em minha Cruzada contra a Telefônica! Agora tenho meu próprio advogado: Queridos inimigos, fiquem espertos!
5 – Roteiristas em greve nos EUA! Aqui expresso meu total apoio: É isso aí, sem roteiro não existe toda a máquina bilionária de entretenimento que tanto enriquece produtores. Escrever não é pra qualquer um!

6 – Ainda impregnado pelo fim de semana em Minas e pelo encontro que tive com meus antepassados. Nesta manhã recebo inesperadamente uma visita da tataravô Concetta, claro que se trata de um fantasma... ela está com seu véu preto na cabeça e um olharzinho serelepe.
_ É verdade que a senhora aprontou um monte?
Ela dá uma risadinha safada:
_ Si si si, bambino...





(foto mais uma vez dos muros da Augusta, desta vez por Rodrigo Tybiriçá)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Lady Baby


Por muito tempo Dolores foi uma pessoa aparentemente comum. Seu trabalho como pedagoga de uma escolinha consistia em conciliar o bem estar das crianças com os anseios desesperados dos pais. Nos primeiros anos driblava muito bem situações variadas e sempre conseguia transparecer calma diante de situações muito adversas, como o dia em que a filha do juiz sangrou após ser empurrada pelo filho de um comerciante.
_ Quero a cabeça daquele pivete...
Berrava o juiz enquanto Dolores, com a maior calma do mundo, tentava mostrar para ao homem que no universo infantil as relações de causa e efeito eram diferentes.
Ela entendia as crianças como ninguém!
Tanto que com o tempo todas as tarefas diplomáticas a aborreciam profundamente. Até que numa reunião pedagógica com Dr. João Martins, o supervisor, simplesmente fez cara de tédio e soprou os lábios:
_ Brrrrrrrr.... chato!
Com o tempo começou a buscar refúgio nas salas do berçário, e João Martins atrás dela gritando que precisava de postura, que pais estavam prestes a visitar a escola e não podiam ver uma senhora como ela rolando no chão às gargalhadas com os bebês. Ninguém percebia o estudo profundo que a mulher fazia da alma dos pequeninos, nem mesmo ela, que agora recebia as broncas de seu superior sem compreender significados em palavras. Apenas ria e batia palmas ao ver o homenzinho ter ataques histéricos.
Um dia Dolores prendeu João Martins como seu boneco preferido, abraçando-o com um carinho sufocante e o mantém ainda hoje na salinha em que está encalhada.
Todos na escola correm feito doidos quando ela começa a berrar escandalosamente por comida.

(imagem de Fernando Botero)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Um leito de flores

Poucas pessoas restavam no cemitério quando Luana começou a roubar as flores dos túmulos. Josué não entendia, apenas compactuava em silêncio. Perante aquela mulher o rapaz metido a valente nas rodas de cerveja se tornava uma criança.
_ E para quem são essas flores?
_ Para nós, querido...
Josué engoliu seco, apesar de sentir calafrios aquelas palavras enigmáticas o excitavam como nunca. E para todos o único motivo pelo qual Josué se envolvera com aquela mulher era para provar sua valentia, já que todos comentavam que Luana atraía a morte para seus amantes. Na realidade não era o gosto por aventuras que levara o rapaz a ela, mas uma atração por seu porte sereno e altivo misturado a uma paixão de infância por Mortiça Adams.
Já eram tantas flores que deixavam atrás de si uma trilha de crisântemos e cravos amassados. A noite comia as lápides quando pararam em frente um túmulo. Luana acendeu velas, era o túmulo de Jorge, o ex-noivo que morrera estraçalhado por cães ao pular o muro errado na tentativa de fazer uma serenata.
Ela forrou todo o espaço com as flores e ordenou que Josué se deitasse. O moço já sentia pitadas de pavor, mas deixou ser conduzido pelos dedos quentes e logo se amavam sobre as flores. Perdido em gozo, medo e perfume ouviu um tilintar.
_ Não se preocupe, são os ossos de nossos amigos...
Dois acordes do violão de Jorge: ao redor do casal os mortos viam espiar os amantes e buscar de volta suas flores. Josué suou frio tentando asfixiar sua covardia ao ver tantas caveiras dançando alegres. Nem reconheceu vó Bentinha, Marcão, o velho Juvêncio, entre outros defuntos conhecidos...
Tão pouco se divertiu em sua festa de boas vindas!

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Santa Cecília pela noite adentro

Quando Cecília se mudou para São Paulo foi morar em Santa Cecília. Às vezes, entre as vastas horas em que se sacrificava no violoncelo, detinha-se numa identificação profunda com a santa: Sentia a voz sair límpida na garganta sufocada, os golpes de espada que não impediam a canção e a dor entrelaçada de seus próprios dedos já trêmulos no fim do dia.
Talvez por isso atraísse anjos novamente para si.
E depois de tantos anos eles voltavam ainda mais travessos que nunca, Cecilia mal podia dormir com o barulho de asas em sua janela e a bagunça que faziam em sua varanda.
Uma noite, a ansiedade da prova da orquestra e a solidão da metrópole despertaram uma profunda revolta: Para o Inferno com aqueles Serafims safados! Envolta por maquiagem sombria e seu vestido mais indecente ela partiu decidida a flertar com os demônios.
E a noite se abriu na fartura de pétalas gordas, evocando nela um perfume inebriante de amor abandonado.

(imagem de Barbara Rogers)

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Inventário de Viagem


Tentando chegar mais cedo ao destino errei meus caminhos e tropecei cidades afora: São Paulo, Ribeirão Preto, Uberaba, Sacramento. 24 horas desaparecido do mapa e colhendo os estranhos souvenir de uma viagem mal programada: a casa de um velho amigo, o ronco profundo de uma senhora manca, um mendigo insolente, as tão-verdejantes campinas em primavera, horas insossas, cobras em compota, Brecht, Tom Zé, Regina Spektor, Radiohead, Björk e a triste constatação de que não há livros nas bancas de Ribeirão além de uma edição tosca de Sêneca.


(Só resta este relatozinho curto e desinspirado para justificar o sumisso do blog nesta semana)

sábado, 27 de outubro de 2007

As Maletas de Tulse Luper


Peter Greenway esteve vagando pela Paulista e eu perdi a oportunidade de pelo menos bater um papo com a figura. Quarta-feira fui todo mal intencionado ver sua exposição pela segunda vez. Enfiando nas caixas de Tulse Luper eu esperava encontrar alguma pista onde o cineasta pudesse estar escondido. Cheguei tarde no entanto!
_ Ah, quem vai desmontar a exposição é a equipe dele...
Respondeu a moça de chapéu de marinheiro.
_ E o filme que ele vai filmar aqui em Sampa? Qual produtora? Quero ser figurante, ofereço-me como voluntário, até sirvo cafezinho, ajudo a produção a se entender com a cidade, carrego caixas...
_ Ai, desculpe moço, mas não estou sabendo de nada. Mas na primeira semana da exposição ele estava circulando por aqui, batendo papo com todo mundo, superdisponível!
Bem, de qualquer forma ficou marcada a força e poesia desta belíssima obra, certamente uma das melhores exposições multimídia que já tive o prazer de assistir nesses anos paulistanos. E fico maravilhado em constatar essa tendência de misturar arte e tecnologia em prol de obras arrebatadoras onde podemos sentir, ver, tocar, cheirar (enfim... viver).
Agora, postando aqui a suitcase intitulada Sangue & Nanquim já me sinto fazendo parte dessa série monumental.
Uma mega instalação interativa certamente será a grande arte do futuro!
Boto fé em sua sacralização Peter!

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Marcus Casanueva


_ E então como fica nosso trato?
_ Não tem trato nenhum, vim trazer sua alma de volta.
Marcus queria olhar firme e confrontá-lo, mesmo sendo alguém de tamanho poder, mas estando tão bêbado tudo o que conseguiu foi uma expressão pastosa e sonolenta.
_ Não foi isso que combinamos.
O Diabo soltou ar com impaciência, olhou o relógio.
_ Bem amigo, me desculpe mas tenho mais o quê fazer. Dê-se por feliz por eu ainda fazer a gentileza de vir até aqui, só porque seu ex-patrão é muito chapa meu.
Marcus visualizou, como tanto acontecia nos últimos anos, seus momentos de glória e luz na pele do protagonista da novela “Paixões Ensandecidas”: dinheiro, idolatria, drogas, extravagâncias, orgias aconchegantes... Agora que nada disso existia mais de que adiantaria aquela alma pálida que o Diabo devolvia?
_ Fique com ela por mais um tempo, repense a situação, é uma alma em bom estado...
_ Quê posso fazer com esse espírito que não presta nem para o próprio dono?
O Diabo sumiu sem fogo nem enxofre. Marcus coçou a cabeça enquanto aquela alma silenciosa e minguada o confrontava.
Por fim encheu mais um copo de uísque e tentou brindar o retorno de seu inquietante desconhecido.

(imagem de Goya)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A bailarina aprisionada


Desde sempre Otto sabia que dentro dele morava uma bailarina frágil e então sofria. Era um homem corpulento,de rosto fechado e apenas os olhos denunciavam a menina aprisionada que sonhava toda a noite com pássaros de fogo, cisnes melancólicos e fadas açucaradas. Conseguiu emprego como faxineiro de uma escola de balé e finalmente teve um pouco de felicidade observando a movimentação e o treinamento daqueles jovens, para dançar sozinho quando as portas da escola se fechavam.
Nas vésperas do Grande Espetáculo Madame Velut adoeceu gravemente. Em meio ao desespero do empresário e das meninas Otto se prontificou a treiná-las. A gargalhada de toda a trupe suplantou as lágrimas aflitas, mas mesmo em meio a tal despeito ele respirou fundo e dançou: por fim todos se maravilharam por ver aquele homem enorme repetir cada passo da coreografia complexa.
Os olhos do empresário brilharam e prontamente fez com que Otto assinasse dezenas de contratos. Tornou-se um dos grandes destaques de seu show de bizarrices.
Agora todas as noites a menina, logo depois de cuidar dos remendos de sua roupa sofrida, prepara entre linhas e agulhas seu casulo.
(alguém melhor que Degas para ilustrar esse conto?)

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

História de Olga


Todos pensavam que Olga tentou se matar várias vezes. Mas era só insônia, então de vez em quando ela abusava um pouquinho nos comprimidos. Só porque ela tinha cara de deprimida significa que queria se matar? Coitada! Olga era alegrinha, tinha hora que parecia uma pastorzinha loira em cânticos de louvor! Tudo bem que ela tinha um gosto meio bizarro e uma fala sonsa de mui chapada. Tentou ter várias bandas e até acreditava que seria a grande musa do pós-punk-feminista.
Mas fracassou porque ninguém parecia ter muita paciência com seu estilo, nem mesmo os membros da banda. Era tanta briga que por fim cada uma seguiu seu rumo e Olga acabou se tornando dona de casa. Não que seu marido fosse rico, mas sabe como é: desemprego misturado com a necessidade de educação do filho. Por fim, depois de alguns anos de vida pacata e pseudo-suicídios ocasionais, Olga acordou com uma lâmpada na cabeça: ah, chegara a hora de sua carreira solo!
Seu marido inventou de ser produtor e ela teve seu primeiro grande hit: “Os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio.”
E sobre essa canção de sucesso ela contava, toda serelepe, que a compôs numa noite em que testava a ressonância da sala através de lentos arpejos na guitarra quando o filho de seis anos bebeu quase um litro de desinfetante de lavanda.
Mas ele não queria se matar não. Era só insônia.

(imagem de Georges Braque)

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Curtas de meio de semana

1 – Ainda impregnado pelo banho de teatro do fim-de-semana. Satyrianas! Até Dioniso pegou fila na Praça Roosevelt.
2 – Caos urbano misturado a confusões profissionais. Alice e eu de mãozinhas dadas na encruzilhada cheia de placas. O gato sorridente apenas diz:
_ Vais chegar sim a algum lugar, desde que caminhe bastante!
3 - Vão jogar veneno nos apartamentos, eu não vou entrar no esquema porque é caro. As baratas estão sabendo e já começaram a buscar refúgio aqui.

4 - Entro no quartinho da Débora porque percebo que o colchão caiu e sou atacado por um poltergeist: roupa e cabides voam sobre mim.
5 – Escrever mais, preparar aulas, cuidar da casa e planejar um atentado contra a Telefônica (um espanhol me disse que ela é uma merda na Espanha também, será possível?).

(vista de minha janela: Augusta sem maldade por Gabriel Küster)

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Uma sereia

Uma vez, após dias navegando em mares estranhos, encontrei uma sereia. Sem entender ainda o mistério de sua beleza e a fatalidade de sua voz (que ainda era apenas um murmuro) levei-a comigo para a cidade.
Passava horas com ela na banheira, abandonando-a apenas quando começava seu canto. Então eu me trancava do lado de fora e sofria na vontade de saciar sua fome crescente. A cada novo dia intensicava o chamado de suas notas agudas e melancólicas.
Acabei tomando uma decisão drástica: convidei meu sócio para um jantar especial. Claro que ele nem imaginava que seria a sobremesa de minha esposa, tão pouco que eu descobrira suas imoralidades.
Escondi a calda num vestido longo e tivemos um jantar corriqueiro, até o momento que inventei a necessidade de comprar cigarros e saí, oferecendo-o com o olhar para minha amada.
Sofri em ciúmes corrosivos durante as duas horas que estive fora, sem acreditar que ela deliciaria a carne de outro. Foram as horas mais tristes de minha vida...
Mas quando retornei tive surpresas: Ela estava calada e severa no mesmo local em que a deixara, enquanto meu sócio dormia num sofá.
Despachei-o rapidamente com alguma desculpa sem sentido. Os braços de minha amada se abriram com sua cantilena que definitivamente me arrebatou em lágrimas e êxtase.
Entreguei-me de corpo inteiro a seu apetite.




(imagem de Ashok Bhowmick)

sábado, 13 de outubro de 2007

Conto sem Fadas


Não temos fadas nessa história porque estavam de greve. Isso preocupava muito Luna, a princesinha, que passava seus tristes dias no alto de um edifício, olhando a cidade inteira abaixo de sua janela. Ela não era prisioneira de nenhum monstro ou bruxo, talvez justamente por isso que nunca lhe aparecesse um príncipe. Ela não tinha que ser salva da nada além de seu próprio tédio.
Começou então a acessar sites na internet buscando príncipe ou algoz que a resgatasse.
Encontrou apenas o anúncio de um dragão desempregado chamado Igor, que era bem intencionado, mas não tinha a menor vocação para carrasco. Na realidade a princesinha passou horas ouvindo as lamentações do grandalhão, fazendo as vezes de analista. Porém Igor lembrou de uma bruxa que conhecera. Era a bruxa Pérfia.
Foram então em busca da feiticeira, que trocara sua carreira pela de esteticista e revolucionava o mundo dos cosméticos com suas pomadas mágicas.
A princesinha insistiu muito que a bruxa a ajudasse.
_ Ora ora... _ disse Pérfia com a elegância de madame _ Estou mesmo precisando de uma sócia.
Luna concordou e hoje cuida de um setor especial da empresa da bruxa: um site de relacionamentos! Agora passa mais horas nas janelas da rede, buscando incansavelmente pelo herói que a salvará de sua diabólica sócia.
(esse é especial para o dia das crianças!)

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Fast Fábula Delivery - Resultado da Promoção!

Bem amigos, é com grande satisfação que anuncio aqui o final da promoção Fast Fábula Delivery, que resultou em textos inesperados e que me ofereceram um desafio bem interessante e válido. Inicialmente essa proposta estava numa brincadeira, ao mesmo tempo que eu testava minha capacidade de escrever sob encomenda. (Editores!!! Tem algum editor lendo isso?) Mas o que esta promoção conseguiu foi me provar a delícia de brincar um pouco com a imaginação alheia, bem como abrir caminho para outros jogos futuros.
Espero continuar contando com o carinho desses leitores tão incríveis que colaboraram...
E para quem pegou o bonde andando o Fast Fábula Delivery foi uma promoção onde os cinco primeiros a comentarem o post poderiam encomendar uma história, agora vocês podem conferir os pedidos no post de agosto "Fast Fábula Delivery", os textos estão espalhados entre agosto e outubro, mas eu os divulgo agora:
1 - Poema de Vento e mar - encomendado por Amadam
2 - A viúva - encomendado por Maria Cláudia (o blog dela está em meus links 'O que escapa')
3 - A Casa de Doces - encomendado por Roger da Porciuncula
4 - Dia e Noite - encomendado por Eversom
5 - A mão decepada - encomendado por Maíra (o blog dela também está aí do lado 'Vida em posts')

Bem, agora tenho que atender a uma encomenda extra feita por meu irmão e que saí um pouco das normas da promoção. Mas para o Daniel é um caso especial.
Quero aproveitar que este post não é um conto para comentar sobre o encontro de ontem. Fui assistir a um bate-papo no corredor literário com a Índigo, Ivana Arruda Leite e Maria José Silveira. Fui porque gostaria muito de conhecer Índigo, cujo blog me serviu de inspiração a incentivo para este. Como bom intrometido sentei para tomar café com elas depois, a Índigo é uma fofa! Espero que tenhamos um contato mais estreito daqui pra frente. Logo depois chegou na mesa o Marçal Aquino e eu lá, no meio de gente grande e simpática...
Deixo aqui meus sinceros agradecimentos ao carinho que recebi.
E vai a dica: conheçam o blog da Índigo, está aí também ao lado: Diário da Odalisca... vou colocar também o link do blog da Ivana, o Doidivana.

Bem... por hora é isso, prometo agora continuar o empenho com os contos, e aguardem que a tal novela das Papoulas Punk está vindo...

será um folhetim interativo? Quem sabe...


(imagem de Bosh hoje)

terça-feira, 9 de outubro de 2007

A mão decepada (final alternativo)

Porém também a mão notara em seu companheiro um comportamento diferente.
Sentia que não mais o acariciava com o calor de outros tempos e suas próprias mãos, com quem tanto se entrelaçara em danças, comunicavam-lhe algum segredo que não compreendia, criando uma expectativa mórbida.
A mão só teve certeza que algum destino cruel a aguardava quando Silvério a colocou na mesma caixa em que viera. Percebia então que faziam uma viajem de carro, e em cada ondulação da estrada sua tensão crescia.
Quão chocada não ficou quando viu Silvério abrir novamente a cova de seu corpo?
Saiu da caixa e agarrou seu tornozelo em súplica: pelo calor tentava que ele entendesse a profundidade e o zelo de seu amor. Silvério também chorava quando a jogou dentro da cova.
Então, presa na escuridão da caixa, ela ouviu um grito profundo e logo o sol da tarde ardeu em sua pele...
As mãos de Silvério o estrangularam e agora a libertavam.
Ainda atônitas as três mãos fecharam a cova com os dois corpos e seguiram mundo afora, em alguns momentos sentindo-se atordoadas por serem não mais que membros rebeldes, mas sempre gozando da alegria intensa de não sofrerem mais a tirania de um corpo.


(encontrei essa imagem sem o nome do autor, vou procurar e informo quando descobrir)

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A mão decepada (final)

Viveu ainda muitas noites de insônia até que finalmente decidiu enterrar seu grande amor. Silvério a colocou cuidadosamente na mesma caixa em que viera e seguiu rumo à fazenda de seu avô, exatamente ao local onde juntos haviam escondido o corpo.
Enquanto abria a cova chorava, principalmente na hora que a mão parecia suspeitar de algo e se debatia em súplica intensa. Mas Silvério estava resoluto e completou o ato, terminando de chorar sua tristeza no colo do vovô.
De madrugada foram acordados pelos gritos do corpo berrando injúrias a Silvério, estava montado no raro cavalo andaluz, que era o único tesouro de toda sua família. O pobre cavalo, apesar de forte era sensível como uma princesinha e tremia sobre golpes severos de chicote.
Segurando as rédeas estava a mão.
Silvério desferia tiros inúteis no corpo que apenas gargalhava, até que a mão fez o cavalo andaluz empinar, jogando-o violentamente no pasto. Antes que tivesse chance de soerguer a mão atirou-se sobre ele, esquartejando-o em poucos minutos.
Então Silvério não tinha mais motivos para desconfiança! O amor e a fidelidade da mão estavam definitivamente provados.
No dia seguinte riam muito lembrando do corpo que queimaram pedaço a pedaço. Divertiram-se num chá com quitutes deliciosos: Silvério, a mão e o cavalo andaluz.

(novamente, imagem de Dali)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

A mão decepada


encomendado por Maíra
Começou numa tarde eufórica, quando uma caixa misteriosa bem em frente ao congresso causou pânico geral entre a multidão curiosa e os técnicos da polícia federal, que suspeitavam de uma bomba. Silvério era um agente com coragem sobre-humana e apanhou a temida caixa, cujo interior continha apenas uma mão decepada.
Tão desapontados ficaram todos que nem deram importância a esse achado, com exceção de Silvério, que levou aquela mão consigo.
Viveram dias felizes Silvério e a mão, que se mostrou intensamente amiga, sempre disposta a fazer-lhe carícias, coçar onde não alcançava e até ser a mãozinha que faltava para os serviços domésticos.
Numa tarde de domingo, quando preguiçosamente cochilavam, apareceu uma visita. Era um homem estranho e soturno, que encarou Silvério com muito ódio.
_ Quero minha mão de volta!
O homem partiu sobre Silvério e rolaram pela sala em luta difícil. O agressor era forte e, apesar de uma mão a menos, tinha o alimento da raiva em seu sangue.
A mão subiu até a gaveta da cômoda apanhando a arma de Silvério. Os dois homens estancaram enquanto a mão remexia afoita, tentando decidir a quem deveria mirar. O invasor suplicou mostrando o braço mutilado mas foi inútil: bastou um tiro certeiro para que caísse sem vida.
Silvério encheu-se de felicidade e amor! A mão o escolhera ao seu próprio corpo.
Vieram mais dias de amor intenso até que nuvens negras povoaram a mente de Silvério em forma de pesadelos recorrentes, onde a mão o estrangulava enquanto dormia.
Tornou-se insone naquela angústia, sufocado pelo medo daquele membro que repousava plácido ao seu lado.
Talvez fosse melhor desfazer da mão...

(... termina no próximo post!
imagem de Dali)

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Desfabulado


Era um velho leão de fábulas que chegara à cidade.
Mesmo que não fosse mais rei de coisa alguma, pelo menos pensou que aquela nova selva poderia lhe proporcionar interessantes histórias, bem como ensinamentos a todos animais ou pessoas que encontrasse.
Começou então a interagir com os bichos de seu caminho, primeiro encontrou cães esnobes que passeavam com seus próprios criados. Então o leão pensou: eu que já fui rei nunca tive criados. Depois procurou os gatos que talvez ainda enxergassem sua nobreza. Mas os que moravam na rua não eram mais do que pobres coitados que já estavam muito atarefados numa sobrevivência difícil para sequer dar-lhe alguma atenção.
Então restou procurar os homens.
Descobriu que para viver com eles precisava primeiro de um emprego, mas era sempre a mesma coisa: não tinha qualificações, sua aparência poderia assustar, suas patas não serviam para o teclado do computador...
Depois de muitas decepções o leão sentou-se numa praça pensativo, imaginando se pelo menos haveria alguma moral para esta história.
Desmoralizado, só restou ao leão rugir as velhas glórias de seu passado aos que passavam na praça.
Apenas um cego ouvia atentamente suas histórias e humildemente concluiu: pobres daqueles que se deixam ficar cegos para uma verdadeira majestade.
(imagem de Rembrandt)

domingo, 30 de setembro de 2007

Meia Luz

Ontem chorei tanto nos ombros de Beti que
Chorei? Será que chorei nos ombros dela?
Tento lembrar mas é confuso, primeiro estávamos tomando sol nos rochedos à tarde e ela me disse que desejava ficar aqui para sempre, sem nunca mais ver cidade, pessoas ou emoções súbitas! Tudo o que precisa agora é esta casa velha nos rochedos. E talvez ela fizesse do mar seu único amante. Acho que foi então que comecei a chorar sem que ela notasse. Eu nunca poderia competir com o mar para ser sua amante, e acho que entristeci por ter marido e filhos na cidade, de repente tenho medo de também não querer mais nada além dela e as pedras... então de noite fui pentear os cabelos numa vaidade sem sentido e ela me ajudava. Ela me ajudava? Ao mesmo tempo eram as mãos de Lauro, o amante dela, que nunca vi, mas que sentia me tocar com seus dedos finos de violinista. Acho que então tomamos vinho e meu corpo lembra de dançar. Foi neste momento que os dedos dela me penetraram?
Foi então que me vi transformada num cavaleiro andrógino que precisava comê-la numa fome sanguinolenta.
Foi aí que comecei a sonhar?
_ Sonhei hoje que você me entregava um pênis numa caixa de jóias, era grande e eu o guardava com medo...
Elizabete sorri. Eu pergunto:
_ O que fizemos ontem à noite depois que você me penteou?
_ Eu não te penteei ontem à noite.
Meu coração dispara como um pobre coitado afoito e covarde, volto-me para os rochedos e sinto pena por não ser poeta, atriz, pintora, uma artista como ela.
Repreendo então as lembranças de minha pele que insistem em me trazer o cheiro do gozo dela e de todas as bocas que me chuparam na noite passada.

(Final de semana tomado por arte nórdica. Este conto é inspirado pelo filme “Persona” de Bergman, misturado com as impressões de uma peça de J. Fosse e um sonho que tive. Na imagem, Liv Ullmann, em “Persona”)

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Cecília e os anjos

Quando menina, Cecília ia sempre ao cemitério colocar flores no túmulo de sua mãe com Tia Jô, que permanecia longo tempo em silêncio e contemplação íntima enquanto ela corria e brincava naquele lugar que achava tão bonito.
Era povoado por anjos!
Mas não os anjos de pedra, já que ela descobrira onde os anjos verdadeiros ficavam nos dias de calor, sempre repousando por horas preguiçosas debaixo da amoreira. Ela os espiava escondida, cheia de fascínio e inveja de suas asas, para depois assustá-los enquanto cochilavam, sentindo prazer em vê-los levantar vôos súbitos, atropelando-se pelo começo do céu. Eles também se entregavam ao jogo e voavam travessos ao redor da menina.
Cecília queria muito pegar um deles...
Então teve uma idéia: em noites quentes passou a colocar amoras suculentas na janela de seu quarto.

De sua cama permanecia vigilante, mas logo dormia, sem perceber o momento em que levavam sua sutil oferenda.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Noite e Dia


encomendado por Eversom
Gosto de estrobo no pão com mortadela, maionese e restos de picles misturados ao sabor de cigarros, cerveja e beijos de tantas bocas que ele mal podia lembrar. Nos olhos a clara alvorada filtrada pelo vidro baço da cozinha. Já era dia e a noitada ainda percorria seu corpo entre odores e sensações que ainda tentava agarrar como um souvenir insólito.
Mas era o momento da renovação necessária.
Com cuidado despiu-se e na água límpida da banheira seu corpo de homem passou pela metamorfose. Pouco a pouco os pedaços dos últimos dias despedaçaram-se e ele se tornou mulher.
Vislumbrou então o oceano que circulava suas pernas enquanto tudo ao seu redor renascia em luz. Finalmente sua alma deixava que o dia resplandecesse: entre o sono e vigília ela era um navio português que explorava o contorno de continentes estranhos em busca de perfume e especiarias.
Foi então que percebeu, em meio ao gesto tolo de apanhar a tesourinha de unha, que seus seios inchavam e contrações sutis aconteciam em seu ventre.
Estava grávida de si mesmo.


(imagem de Frida Khalo)

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Histórias de mamãe lobo

Aquele não era mais um tempo para lobos!
E isso mamãe lobo uivava como uma canção triste para sua ninhada. Há muito que nem a escuridão do bosque era um abrigo seguro, há muito que não podiam mais acreditar no medo dos homens, já que agora suas peles valiam para ricos carpetes, seus ossos moídos eram remédio lendário contra males diversos e até seus olhos tornavam-se fina iguaria ao molho de champignon com trufas.
Bons tempos quanto tudo que os homens desejavam era a cabeça de lobos como troféu.
Então ela avisava: cuidado com meninas de capa vemelha e convidativas faces rosadas, dissimuladas em apetitosa inocência que levava os incautos à casa isoladas. Cuidado com os olhos pequenos que impediam de ver melhor a armadilha escondida no ato tão singelo da menina ao se deitar nua e convidativa numa cama aconhegante.
Pois quando os lobos, cegos e famintos, preparavam-se para o sabor e deleite daquela carne nem percebiam o tiro definitivo no pescoço e dezenas de facas nas mãos de caçadores do mercado negro.

(imagem clássica de Gustave Doré)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Pães-de-queijo para Regina

Viajei uma noite para Nova York e encontrei Regina num clube de jazz do bairro russo. Ela cantava aqueles tempos bons de tangerinas, Shakespeare e beijos inesperados. Eu me apresentei como o trigésimo segundo filho do rei e sugeri que vivêssemos juntos, talvez felizes, afinal eu também fora esquecido pelos livros de história e pela Bíblia.
Mas o que eu poderia oferecer em troca de suas canções?
Resolvi então assar pães-de-queijo enquanto ela cantava a queda de Ícaro ou a solidão da cidade. Mas acrescentei alguns miligramas de morfina à receita, para que ela pudesse ser viciada em minha arte tanto quanto sou dependente da dela...
Agora não ligamos mais para o abandono de nossos deuses, o roubo de nossas idéias, o monóxido de carbono ou para aquela puta da Mary Anne. Somente precisamos seguir, seja na traseira de um caminhão ou em sonhos de baleias e corujas. Sem medo da lama, do frio ou do que é velho.
Tatuamos sereias no braço enquanto eles constroem uma estátua de nós!

(no vídeo o clipe de US, de Regina Spektor)

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Casa de Doces


encomendado por Roger da Porciuncula

A Casa de Doces era grande, gorducha e confeitada.
Os olhos de Tito eram tomados de mistério diante daquela beleza alheia, nutrindo a fome nunca satisfeita de provar um dos voluptuosos chocolates da vitrine. Todas as manhãs passava um bom tempo observando, imaginando o que poderia fazer para merecer um pedaço.
De dentro da loja era vigiado por Bibi, a filha dos donos, que alimentava outros desejos e foi mais corajosa, aproximando-se do menino e pedindo que a ajudasse a fugir. Tito retrucou assombrado:
_ Mas você mora na casa de doces...
_ Mas mamãe me obriga a comer pra engordar...ela é uma bruxa que come crianças.
Com receio Tito combinou então que a levaria para sua casa, desde que ela trouxesse consigo uma cesta cheia de doces. Bibi concordou e se encontram num canto escuro da rua logo no fim de tarde. Tito se aproximou sorrateiro e a puxou em disparate por várias quadras. Chegando em frente a uma casa distante ele pediu que ela esperasse um momento, Bibi tinha o coração tão tomado por sentimentos saborosos que demorou a perceber que Tito fugia com os chocolates.
Quando se deu conta Bibi viveu a primeira grande mágoa e com ódio lançou um feitiço: todo o chocolate da cesta transformou-se em pedras.

Tito ainda assim as devorou em lentidão e agonia, ingenuamente confundindo dor com deleite.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Era uma Casa III - A Produtora

Tia Pecúnia pensou muito e concluiu que precisavam de um produtor capaz de fazer com que a festa permanecesse, foi quando Solange Brasil se prontificou a ajudar. Ninguém sabia ao certo de quem aquela mulher era amiga, mas o fato é que exibiu um vasto currículo de empresária da área de moda e tecnologia. Para provar seus dotes prometeu um grande evento. Para tanto se instalou na sala e passava dia e noite debulhando dezenas de negociações pela internet, quase indiferente à toda agitação da festa ao seu redor:
_ Sou speed cara! Vocês não estão entendendo.
Realizou um desfile de moda desconcertante, povoado de modelos estranhas e figurinos que pareciam ter algo de doentio. Solange ignorava as críticas chamando todos de jumentos subdesenvolvidos, apoiando-se para tanto nos elogios de dois conhecidos seus que exibiam brasões de nobreza européia.
Foi um exuberante fracasso!
O que sobrou do desfile foi Rebeca, uma modelo silenciosa e raquítica que passava horas mexendo e murmurando com os objetos de sua bolsa.
Virgínia se apaixonou pela moça e resolveu que ela seria sua boneca!

(continua?

Imagem novamente de Fernando Botero)

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

200 Gatos

Tudo começou quando Lavínia teve um sonho com gatos persa rechonchudos.
Ela corria desesperada por uma rua salvando os enormes bichanos de serem atropelados ou devorados por cães dinamarqueses. Eram pedaços de vida frágeis e valiosos que escapavam de suas mãos.
No dia seguinte acordou sobressaltada, tinha a certeza absoluta que recebia uma mensagem dos deuses.
Madame Verônica, sua vidente preferida, confirmou a revelação: sua fortuna corria sério risco. Resolveu então povoar sua casa de gatos persa. Tudo começou de maneira inocente, até que Lavínia percebeu que eles realmente tinham o poder de decifrar a alma das pessoas, teve certeza no dia em que Lady Laura se eriçou toda diante de um namorado que a traía compulsivamente, em seguida teve sinais sobre um primo que tinha interesse em furtar sua louça de prata.
Pouco a pouco eles se tornaram seus ministros e dominavam a casa, alguns pareciam guardas, revelando todo o movimento da vizinhança entre ronronadas.
Enquanto isso ela permanecia na cama, amamentando os rebentos e mesmo os adultos com o leite de seus próprios seios.
Em algum tempo já não precisava de nenhuma pessoa em sua vida, delicadamente ela construíu seu exército.





(imagem de Leslie Naveh)

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O Violinista e as Tartarugas

Pablo era um dos grandes violinistas de seu país, contava com grande estima e admiração em qualquer local que se apresentasse, fosse numa taverna povoada por homens rudes como touros ou entre afetadas damas de corte. Alguns diziam que era o novo Paganini e a sedução de sua música desfilava pelo país em sabores de pecado.
Porém era atormentado pelas tartarugas!
Assim queixava a seus amigos, eram dezenas que povoavam seu quarto em marcha lenta e incômoda, atrapalhando-lhe a prática do violino e as noites de sono.
Os companheiros de Pablo se entreolhavam preocupados com a sanidade do amigo, porém resolveram fazer uma pequena brincadeira: encheram o pequeno apartamento com dezenas de tartarugas!
Todos o acompanhavam ansiosos quando abriu a porta, mas ao invés de qualquer surpresa Pablo simplesmente entrou em casa com sua expressão corriqueira e suspirou:
_ Como podem ver... são essas tartarugas o tempo inteiro...

(Esta história é um episódio da vida do lendário violinista espanhol Pablo de Sarasate livremente adaptada para um conto, e esse da foto é o próprio Sarasate)

terça-feira, 11 de setembro de 2007

A Viúva

encomendado por Maria Cláudia
Helena anda de um lado para o outro com insônia. Já conheço bem essa cena, logo não poderá mais suportar e acabará ligando para alguma amiga, desabafando até os soluços, atacando uma garrafa de vodka e xingando-me até a exaustão!
Tudo por causa de uma culpa inútil que ela insiste em carregar.
Mas nunca a culpei de nada, nem mesmo na hora em que o envenenamento se tornou agonia intensa e ela gemia encobrindo o rosto, talvez arrependendo-se de seu ato ou simplesmente não podendo suportar uma visão tão clara da morte.
Agora, sendo apenas um espectro só me resta aguardar pacientemente os momentos em que ela se acalma, quando posso aproximar devagar de seus ouvidos e sussurrar com a voz que não tenho mais:
_ Helena! Se você pudesse ter compreendido minha fraqueza! O que podia fazer se me ensinaram a amar com dor? Toda a indiferença, as grosserias, traições... cada desilusão que em ti provocava era a vívida materialização daquilo que covardemente eu mantinha sem coragem de compartilhar contigo.
Nunca passei de uma criança egoísta.
Portanto entendo que tenha me matado!
Meu destino agora é guardá-la, velar seu sono, observar os enlevos de sua respiração, a ânsia de suas palavras, a luz que torna sua pele escura e até mesmo seus gemidos quando está nos braços de outro...
Amar-te sempre será meu segredo maior!
(imagem de Magritte)

sábado, 8 de setembro de 2007

O Sátiro (Final)


E então pude provar mais uma vez do néctar do amor, já quando achava que meu pau não levantaria mais. Fui fazer entrega para uma mulher que morava no alto dum prédio. Foi lindo! Não era bonita, mas estava ébria e no fundo de sua tristeza ela me lembrava uma das ninfas de outrora. Cheirou a farinha, me ofereceu, eu recusei. Ela então me deu bebida e me despiu. Assustou-se ao ver meu chifre, meu casco. Mas depois do susto se entregou com violência. Do alto de sua janela tão alta vi campos ao longe. Aí descobri que eles existiam aqui! A cidade tem um fim.

Hoje eu decidi, vou embora!

Vou descobrir o caminho daqueles campos, lá quem sabe reencontro meu bando, vou me despedir da velhinha, levar água, maçãs, um desses vinhos horríveis e vou. Lá talvez eles estejam, meus irmãos, meus amigos, minhas amadas ninfas, os frutos de meu deus. E vou poder voltar a correr com o vento...

Já correste com o vento? Deveria, assim poderia ter uma centelha do que é felicidade...