segunda-feira, 28 de abril de 2008

Ciranda: Teodoro


Durante o dia ele era estátua, e não entendia muito bem sua profissão. Sabia que o desenhavam e sabia de sua capacidade fabulosa de ficar imóvel, desde criança aprendera bem essa habilidade ao se misturar às plantas, à areia da praia, ao mar e iria até céu se pudesse voar. Entendia-se também como alguém que tinha coragem de despir-se facilmente na frente de desconhecidos. De relance Teo percebia que os desenhos eram bem feitos, mas não eram verdadeiramente de seu corpo, nenhum traço sequer o revelava, nenhuma curva era real. Concluía então que se qualquer um daqueles estudantes passasse a noite com ele, o que significaria o dispêndio de um pouco mais de dinheiro além do que recebia pelas horas de estátua, aí sim teriam a dimensão verdadeira de seu corpo, assim como fazia com aqueles que encontrava em suas andanças noturnas. Atravessava bares, clubes, boates e pessoas numa caminhada incessante e tão silenciosa quanto seus momentos paralisados.
No calor imóvel da tarde deixava que então sua alma vagasse eterna e agitada pelo ar, distraidamente não percebia um amor velado sendo moldado através dos riscos de grafite: nas mãos de Vitor ele se tornava um arcanjo de luz e pecado, e se pudesse ver esse desenho que estava tão longe, no extremo canto distante da sala, onde seus braços eram transformados em asas feridas, sentiria uma emoção antiga e estranha desabrochar, tornando-se capaz de romper seu eterno silêncio e finalmente dizer em comoção única:
_ Este sou eu!

(essa é a série nova que lanço hoje no blog, cada semana um personagem dá a mão a outro na esperança de que uma história surja de várias, nada está muito programado, portanto, como sempre estou aberto a palpites e sugestões. Esta semana pretendo também entregar mais uma encomenda da promoção. Não sei o autor da imagem)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Retro-visão


Para Éric, Érica, Dri, Gabriel e Maria (inevitavelmente inspirado pelo seu texto, cujo título tomei a liberdade de copiar)

Pelo espelho do carro corriam ruas perdidas e meio desencontradas, eram ruas que andei muito, ruas que cheiram a desejos e amoras tardias. Que pena não ser estação de amoras! Então lembro daquele tempo em que os sonhos e medos eram colhidos a baciadas. Éramos tão sem grana, mas tão nobres que podíamos nos dar ao luxo de um café da manhã de três horas. Queria muito fugir de lá naquela época e agora aspiro com uma saudadezinha melancólica o cheiro de chuva e terra, enxergando ternura até no mato que brota do cimento velho. Melhor que isso foi ainda o reencontro com as amigas eternas... e ah se a gente tivesse comprado mais uma garrafa de vinho... ah se tivéssemos só mais um dia de feriado... ah se pudéssemos carregar todos no bolso... sempre falta alguma coisa aos adultos nostálgicos enquanto dos olhos do menino derrama-se um oceano de emoções fartas.
Somos inevitavelmente devorados por uma majestosa baleia!


(imagem de Gabriel, sobre os olhos da Maria no retrovisor)

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Uma donzela

encomendado por Lidia
Ofélia era uma donzela enclausurada não por paredes ou carrascos, mas pela melancolia profunda de sua face. Contraditoriamente sua alma era um oceano de sonhos e alegria pura, embora ninguém acreditasse: todos fugiam desconcertados de sua presença, respondendo àqueles olhos tristes e cansados com o abandono.
Em silêncio ela clamava por efervescência, mas acabara se contentando com a felicidade de observar a alegria alheia. Era assim desde a infância.
Quando a mocidade chegou trazendo suspiros e paixões ela continuou prisioneira de seu semblante, enquanto por dentro Vênus e Baco celebravam orgias maravilhosas. Justamente nessa época ela despertou o amor de um cavaleiro triste, que depois de observá-la como uma musa por meses não teve medo de aproximar. Ele já tanto contagiara outras donzelas com seu pessimismo irremediável que temia cortejar outra que não fosse mais triste que si próprio. E para ele Ofélia parecia superá-lo em angústia, teve certeza disso desde a primeira lamentação que jogou em seu regaço, entendendo seu silêncio como uma frieza quase desumana. Internamente ela gargalhava com aquelas histórias que lhe pareciam tão ingênuas e pueris.
Por fim casaram-se e por vezes choram juntos, ela de riso ele de dor, em lágrimas iguais em proporção de sal e água.

(imagem de Da Vinci)

terça-feira, 15 de abril de 2008

Velho Mundo

O dia cinzento e frio convida o corpo para que durma mais e esqueça a inevitável ciranda do cotidiano que faz os dias correrem cegos e incompletos. Agarro a vida pela cauda e sou sacudido como uma marionete velha na tentativa de atingir o lombo deste monstro maravilhoso.
Será tão triste assim o mundo depois que Gulliver e Ulisses se aposentaram? É hora de voltar a navegar por mares estranhos, sonhando com mundos habitados por galinhas gigantes, dragões do ar e árvores que resplandecem ouro maduro.


(anuncio oficialmente que esta semana, custe o que custar, será entregue a primeira encomenda da promoção. Iniciarei também uma série de contos especiais chamada 'Ciranda'. Possíveis leitores atentos devem notar que diminuí radicalmente o número de publicações semanais desse blog. Faço isso com muita tristeza, mas sabem como é: aquela antiga necessidade de trabalho. Se eu pudesse cuidava do blog como um funcionário. Batia o ponto às oito e saía às seis da tarde. A pintura chama 'La Balsa de la Medusa', encontrei sem o nome do autor)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Santiago


Ela desceu por longas escadas até os calabouços debaixo da terra e numa cela entre corredores escuros encontrou Santiago: Calado! com os olhos vermelhos, nu e coberto de feridas que expelem pus e sangue. Aproxima-se com medo enquanto seu amado a encara com clemência, quase imediatamente busca água e limpa as feridas apesar do nojo. E vencendo este sentimento inaceitável consegue pouco a pouco moldar um abraço entre angústia e carinho. Ele murmura e o coração dela lateja. Comprova que apesar de todo o sangue e sujeira ali está o calor de Santiago, seu peso, seus braços, seus dedos delicados que brincam com a orelha e os cabelos dela como se nunca existisse dor, por fim ainda cantarola uma melodia singela que a embala num sono aconchegante.


(imagem de Velizar Krtisc)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Recadim

Muito obrigado aos pedidos que tenho até agora na promoção Fast Fábula Delivery, todos são bem interessantes e alguns serão desafios deliciosos, vou começar a trabalhar nas entregas, lembrando que ainda há tempo de fazer pedidos, é só ir até o post Grande Promoção em Época Revirada e fazer sua encomenda. Por hoje deixo um filminho da Pixar que vale muito a pena ver! Abraços!

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Banho violeta


Ela mergulhava no banho vagarosa, deixando seu corpo afundar num perfume de pétalas mortas. Seu banho era místico, rodeado de inúmeros vasos de violetas que cuidava com esmero. Em épocas de flores elas entoavam um canto hipnótico, despertando sensações diversas: na tristeza derretia, na alegria encolhia-se encantada e frágil, enquanto na paixão aspirava tão intensamente sua própria humanidade que se tornava como elas: violenta! Nessas épocas trazia amantes furtivos ao seu santuário. Sem que demonstrasse a fúria do transe afogava-os lentamente até as raízes da terra.





(Esse texto foi concebido enquanto escutava distraidamente a música desta cena, que faz parte do filme Drawing Restraint 9, de Matthew Barney, o marido da Björk, que atua no filme e assina uma belíssima trilha sonora)

terça-feira, 1 de abril de 2008

Adoráveis mambembes da Cornuália


Nós (pessoas que assim como eu nunca moraram ou mesmo passearam pelo velho mundo), geralmente temos a impressão de que enquanto no Brasil a barbárie come solta nos países ricos tudo é harmonia... inclusive a vida de artistas, já que lá são todos supervalorizados e até o serviço mais simples pode proporcionar uma vida digna. Neste fim-de-semana fui assistir Cymbeline uma peça pouco conhecida de Shakespeare na montagem de um grupo inglês, o Kneehigh Theatre. Preparei a alma para toda a grandeza e pompa de uma royal tradição, afinal era Shakespeare por ingleses! Mas a montagem surpreendeu justamente pela irreverência e liberdade diante do bardo, deixando que os personagens transitassem entre baixeza extrema e uma sensibilidade cândida, quase infantil. Ontem fui a um bate papo com os fundadores do grupo e descobri que eles são assim mesmo: livres e irreverentes! Totalmente despidos do peso da tradição secular, de academicismos e mesmo de uma estrutura ideal. Eles são mambembes, de uma região chamada Cornuália e assim como tantos grupos de teatro daqui passam por aqueles conhecidos dramas por causa de dinheiro, centralização cultural de uma grande metrópole e por serem assim: simples e generosos, tendo justamente a generosidade como palavra norteadora de seu espírito e trabalho.
Só tenho a agradecer por aquele momento final da peça, um pouco nostálgico por não ter em meu bolso aquela canção que conseguiu me arrancar algumas lágrimas daquele estado de enlevo raro que podemos chamar de sublime: darkness is nature lullaby... ou a escuridão é a canção de ninar da natureza...