sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Tio Ludovico

Em sua loja tio Ludovico vendia de tudo: livros velhos, móveis antigos, brinquedos, fantasias. Quando criança tínhamos o grande privilégio de brincar na loja quando ele encerrava o expediente. Então tio Ludovico se trancava no escritório e nós vislumbrávamos aqueles mundos ao alcance de nossas mãos! Criávamos uma infinidade de monstros e segredos, às vezes passando tanto tempo dentro do depósito ou dos guarda-roupas que confundíamos nossas identidades.
Então eu percebi que podia trocar minha realidade por qualquer uma daquelas fantasias da loja. Assim escolhi ser o príncipe de um país inventado: eu morava então num palácio gigantesco e tinha todos os míseros desejos atendidos por uma legião de servos. O único elo que tinha com a vida que abandonei era a loja de Tio Ludovico, a quem nunca deixei de fazer visitas semanais, pois ali encontrava artigos exóticos e conhecia os mais variados viajantes.
Os anos se passaram rápido em meu reino, já era o príncipe regente daquela terra quando aconteceu um encontro inesperado. Estava na loja do Tio Ludovico e fui interceptado por uma mulher. Seu olhar era triste e familiar, ao mesmo tempo carregado de uma esperança cega. Não entendia o que acontecia e perguntei se estava tudo bem, ela disse que não, que nada estava bem para ela há mais de vinte anos, quando seu filho entrou naquela loja e nunca mais voltou. Sorri um pouco sem jeito e disse que nada podia fazer por ela, mas a mulher me olhava ainda, como se em mim o tivesse encontrado. Pensei em fugir da loja, mas aquele olhar me petrificava. Perguntei a ela se por acaso não queria vir comigo para meu reino, onde eu também era um filho que perdera a mãe. Ela finalmente foi capaz de sorrir, agradeceu minha oferta e disse que jamais trairia seu filho, mesmo que ele estivesse morto.
Vaguei horas pelas ruas naquela tarde, algo em mim mudara depois daquela mulher, sentia-me confuso e tentando a lembrar da vida que abandonara, mas era inútil, na verdade não sabia mais quem eu era nem de onde vinha.
A loja de tio Ludovico era a única reminiscência de todo aquele passado. Então pensei: devo procurá-lo? Devo abandonar meu palácio e encontrar o que realmente sou?
Com muito dor tomei uma decisão: ordenei que meus guardas expulsassem Tio Ludovico para sempre de minhas terras.
Agora todas as noites sonho com um monstro horrendo que me devora.

(imagem de Miró)

Um comentário:

F.Baladez disse...

Confesso que fiquei muito confuso... li emocionado até o ponto em que levei uma certeira pedrada no meio da testa... caí, bati a cabeça. Ainda estou confuso meu caro amigo.
Foram os dois últimos parágrafos, malditos dois últimos parágrafos! que me apredejaram.
Eu suspirava, que lindo!, que belo!, com um sorriso triste e algumas imagens na mente, ouvindo um distante coração nostálgico, mas, estes dois últimos parágrafos me acertaram em cheio! malditos dois últimos parágrafos! Não pude mais regozijar quando vi que a loja do Tio Ludovico sofrera o maior dano com o violento impacto da pedrada, meu reino desapareceu, meu eu se misturou e eu perdi seu literatura em algum lugar.