quarta-feira, 28 de novembro de 2007

No bar


Quando estava sozinha no bar Cecília deixava-se ter amantes imaginários. E em sua mesa de canto sentia uma alegria sutil ao constatar que também fazia parte do romance fingido dos outros. Entre as brechas de fumaça e jazz deixava fluir o jogo de luz e sombra.
_ Ah, o que essa mulher faz sozinha e calada a essa hora?
Imaginava a indagação muda dos outros, sentindo-se deliciosa e clichê. Naquele tempo não queria ainda conversar, era como se sondasse o terreno e deixava que as noites a atravessassem e a tornassem cada dia mais familiar, a tal ponto que notava uma cumplicidade na maneira que os garçons buscavam a dose de gin e em como correspondia a tímidas saudações com ligeiros movimentos de sobrancelhas. Enfim mergulhava na fantasia e adivinhava o gosto de cada um daqueles amantes hipotéticos, que até já começavam a invadi-la em sonhos eróticos: primeiro foi o guitarrista da banda de jazz e depois a mulher sombria que gargalhava com excesso de dentes.
E toda semana repetia seu rito, abraçando a infinitude de ser uma incógnita.


(Imagem de Dignimont André)

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Quem-se-quer


Estava com seus melhores sapatos e seu melhor terno quando os deuses da chuva levaram junto com a enxurrada sua dignidade...
Abrigou-se numa lanchonete próxima e viu escorrer, com a violência do temporal, o sonho de reaver um amor antigo. Era a única oportunidade para um recomeço e agora não era mais um homem belo, pontual e perfumado que deixara sua casa com uma grande certeza.
Observando o corre-corre dos funcionários da lanchonete e a tristeza de seu próprio semblante embaçado no metal velho da máquina de café expresso, resolveu que as pétalas do buquê lhe responderiam se toda ansiedade e correria valiam a pena.
E quando a última pétala desceu bueiro à baixo sentiu um calafrio bom, pediu uma dose e respirou vida nova:
Deu mal-me-quer.

(imagem famosa de Magritte)

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Violinista lá dentro



Em virtude de um teste volto ao violino abandonado e desdentado há mais de mês: renovo suas cordas, limpo o breu sujo e a velha relíquia volta a brilhar em sonoridade quase nova. Os dedos reaprendem o caminho e a dor. Em meio ao esforço de transformar carne, metal e madeira nessa música chorosa e melancólica escuto a voz fraca do violinista lá dentro!
_ Toca aquela do Mozart... ah, você ainda consegue a Romanza... um bem que podia ter aprendido o Prokoffiev...

Não é que o danado ainda respira!
Respondo aos anseios desse amigo moribundo e ele se deixa embalar no canto de sonhos esquecidos, quase ancestrais, enquanto eu mesmo me perco nessa graça estranha de contemplar o que poderia ter sido.

Em homenagem a esse momento coloco aqui uma das obras para violino que-nunca-vou-tocar que mais amo: Tzigane de Ravel, pelas mãos de Vengerov (reparem em como a música se espedaça ora em sonoridades cristalinas, ora em estilhaços pontiagudos)

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Interlúdio

Depois deste último conto que se estendeu desnecessariamente por três posts pressinto um momento de crise em minha querida máquina de fabulações. Será que minha receita de continhos fantásticos está gasta?! Pelo menos no começo eles brotavam com mais naturalidade... porém agora...
mas é como já disse alguém que não lembro: escrever se torna cada vez mais difícil com o tempo.

Esta semana começa uma fase incerta, (talvez decisiva) acredito que tente algum laboratório. Seria um prazer se vocês me ajudassem a definir este caminho, meus queridos leitores tão silenciosos... escrevo para agradar vocês, se fossem apenas pirações subjetivas não publicaria. Portanto, este pequeno escritorzinho em formação pede, humildemente, mais colaboração. Poucas pessoas tem comentado ultimamente, mas o contador demonstra que existem acessos. Não se acanhem pessoal...
E para o entretenimento de vocês aqui vai um clipe mui simpático de Chan Marshall, vulgo Cat Power.

E que a força esteja conosco!



sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Dona Carmem (Final)


_ Muito obrigada, estou quase na final do concurso de palavras cruzadas!
Era isso então minha querida inimiga? Observei ainda mais um pouco a maneira que ela enchia a mão de jujubas e amendoins, como uma menina pateta e gulosa. A quem estavam querendo enganar? Aquela não poderia ser digna nem de minha repulsa. Onde estava a mulher capaz de torturar consciências silenciosamente?
_ Você não é Dona Carmem.
_ Como?
Dei um tapa nos potes de guloseimas.
_ Onde está Dona Carmem? Não quero tratar com essa cópia barata!
Pela primeira vez em minha vida comecei a berrar tudo o que sempre desejei. Falei tão exaltado e atirei contra aquela mulher tantos insultos que ela chorava, trêmula de medo. Os olhinhos de azeitona se desmanchavam e a secretária abriu a porta com cara de susto. Os diabinhos deleitavam-se, dançando com cantilenas agudas ao redor da cabeça da falsa Dona Carmem.
Saí da sala sem dizer mais nada e segui para o RH, onde pedi minha demissão.
Mas não descansarei enquanto não colocar minhas mãos na verdadeira Dona Carmem. Sigo pelo mundo procurando o rastro de minha doce inimiga como quem busca a presa ideal. Cotidiano, carreira, negócios, futuro... o que importa? Meu único sonho é fechar meus dedos em seu pescoço e poder me divertir um pouco vendo sua face tornar-se roxa e clarear-se, tornar-se roxa e clarear-se, tornar-se roxa e clarear...
Meus diabinhos seguem atentos, prontos a me alertar se ela prepara alguma armadilha sorrateira na penumbra.

(esse conto partiu de reflexões sobre sentimentos obscuros e acabou se transformando numa coisa muito diferente do que foi pensado inicialmente. Na imagem uma bruxa renascentista de autor ignorado)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Dona Carmem (parte II)


Três diabinhos pousaram sobre meu ombro quando entrava na sala de Dona Carmem. O primeiro era o da revolta, que não parava de citar a lista de injustiças e podridões daquela empresa, e como poderia usar essas informações para chantagens. O segundo era o do assassinato, este insistia que a única maneira realmente digna de superar um inimigo era sua morte, mesmo que não terminasse impune. O terceiro era o do escárnio, que gargalhava ao ter a visão de Dona Carmem dançando pelada sobre a mesa da diretoria.
Dentro da sala ela estava absorta na tela do computador, olhou para mim sorrindo. Acho que não lembrava de vê-la sorrir.
_ Aceita uma jujuba? Um amendoim?
Diante dela havia dois potes com essas guloseimas. O diabinho número três mergulhou com vontade nas jujubas e brincava como uma criança, o número dois pousou sobre a cabeça dela e fazia sinais para que eu atacasse. Só o primeiro permanecia quieto e analítico.
_ Você sabe quem é o autor de Casa de Bonecas?
Onde ela queria chegar?
_ Casa de Bonecas? Como assim?
_ Sim... uma peça, está escrito aqui, Casa de Bonecas, cinco letras... você entende de teatro, não é?
_ Ibsen.
_ Como?
_ O autor... I – B – S – E – N
Dona Carmem anotou o nome prontamente. E porque eu respondera corretamente? Levantou os olhinhos de azeitona e estava sorridente, com uma expressão infantil e boba.
Aquela não era Dona Carmem!

(termina no próximo post, imagem de Erhard Schoen)

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Dona Carmem (parte I)

Quando fui chamado para uma conversa com Dona Carmem engoli um pouco da convulsão assassina que me tomou. Minhas mãos tremiam. Em sua maldita ante-sala observava a secretária em sua expressão plácida, mecânica, falsamente cordial. Ela estava calada, normalmente tagarelava inutilidades, mas aquele dia ela só podia estar silenciosa por um motivo: era minha demissão! Não tinha mais jeito, todos naquela empresinha de merda já sabiam de meu ódio a Dona Carmem. Durante os três anos que trabalhara ali sempre deixara uma ironia ou outra de relance, entre alguns comentários até maldosos, porém já tinha algum tempo que eu me divertia muito ridicularizando Dona Carmem para todos, até diante seus conhecidos puxa-sacos, e há muito que nem falava mais de salários injustos, horas extras mal pagas, falta de ética profissional. Nada disso, agora eu imitava o andar vitoriano dela, sua fala desprovida de paixão, os cacoetes de seu rosto no momento em que estava tensa, seu senso de humor ridículo, o colarzinho com um crucifixo romano. E cada dia crescia minha vontade de estrangulá-la lentamente, apertando seu pescoço enrugado bem devagar, sufocando-a em silêncio, observando seus olhinhos de azeitona tornarem-se novamente puros para deixar que recuperasse o fôlego. Aí repetiria a ação novamente e novamente e novamente e novamente...
_ Dona Carmem já vai te atender.
Acordei bruscamente das delícias de meu ódio e senti eletricidade percorrer minha espinha. Era o momento!




(continua... na imagem um dos dragões de Goltizius)

sábado, 10 de novembro de 2007

Sobre pele



Com o coração tão reduzido a pedaços resolveu partir enquanto ele dormia.
Pelo caminho de volta atravessava paisagens emotivas numa violência feliz! Até que na distração de deparar-se com lírios negros percebeu que algo ainda devia ser feito.
Retornou ao esconderijo e o encontrou sonâmbulo, dançando na penumbra do quarto secreto. Acompanhou seus passos, enquanto desfiava sua inocência com a fragilidade de uma bola de lã.
E costurou suas melhores pérolas no corpo dele.



(no vídeo o clipe de Pagan Poetry, Björk em um de seus momentos mais sereia...)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Curtas de meio de semana II


1 – Semana começa com uma conversa terrível com a peituda canibal. Olho em seus olhos ferozes enquanto ela insiste dizendo, com sua voz meio fanhosa, que come meus dedos para meu próprio bem.
2 – Organização do futuro! Estou pensando em abrir uma empresa de venda de projetos mirabolantes... alguém precisa de idéias revolucionárias? Tem dificuldade em engordar idéias insossas e mirradas? Por favor, contate-me! Um nó cerebral ou seu dinheiro de volta.
3 – Sentindo falta de ler um romance que não sei exatamente o que é... estou num pula pula infernal de livros e autores e não encontro o sacro-sumo que necessito. Será que é hora para eu escrever um romance?
4 – Ganho um aliado importante em minha Cruzada contra a Telefônica! Agora tenho meu próprio advogado: Queridos inimigos, fiquem espertos!
5 – Roteiristas em greve nos EUA! Aqui expresso meu total apoio: É isso aí, sem roteiro não existe toda a máquina bilionária de entretenimento que tanto enriquece produtores. Escrever não é pra qualquer um!

6 – Ainda impregnado pelo fim de semana em Minas e pelo encontro que tive com meus antepassados. Nesta manhã recebo inesperadamente uma visita da tataravô Concetta, claro que se trata de um fantasma... ela está com seu véu preto na cabeça e um olharzinho serelepe.
_ É verdade que a senhora aprontou um monte?
Ela dá uma risadinha safada:
_ Si si si, bambino...





(foto mais uma vez dos muros da Augusta, desta vez por Rodrigo Tybiriçá)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Lady Baby


Por muito tempo Dolores foi uma pessoa aparentemente comum. Seu trabalho como pedagoga de uma escolinha consistia em conciliar o bem estar das crianças com os anseios desesperados dos pais. Nos primeiros anos driblava muito bem situações variadas e sempre conseguia transparecer calma diante de situações muito adversas, como o dia em que a filha do juiz sangrou após ser empurrada pelo filho de um comerciante.
_ Quero a cabeça daquele pivete...
Berrava o juiz enquanto Dolores, com a maior calma do mundo, tentava mostrar para ao homem que no universo infantil as relações de causa e efeito eram diferentes.
Ela entendia as crianças como ninguém!
Tanto que com o tempo todas as tarefas diplomáticas a aborreciam profundamente. Até que numa reunião pedagógica com Dr. João Martins, o supervisor, simplesmente fez cara de tédio e soprou os lábios:
_ Brrrrrrrr.... chato!
Com o tempo começou a buscar refúgio nas salas do berçário, e João Martins atrás dela gritando que precisava de postura, que pais estavam prestes a visitar a escola e não podiam ver uma senhora como ela rolando no chão às gargalhadas com os bebês. Ninguém percebia o estudo profundo que a mulher fazia da alma dos pequeninos, nem mesmo ela, que agora recebia as broncas de seu superior sem compreender significados em palavras. Apenas ria e batia palmas ao ver o homenzinho ter ataques histéricos.
Um dia Dolores prendeu João Martins como seu boneco preferido, abraçando-o com um carinho sufocante e o mantém ainda hoje na salinha em que está encalhada.
Todos na escola correm feito doidos quando ela começa a berrar escandalosamente por comida.

(imagem de Fernando Botero)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Um leito de flores

Poucas pessoas restavam no cemitério quando Luana começou a roubar as flores dos túmulos. Josué não entendia, apenas compactuava em silêncio. Perante aquela mulher o rapaz metido a valente nas rodas de cerveja se tornava uma criança.
_ E para quem são essas flores?
_ Para nós, querido...
Josué engoliu seco, apesar de sentir calafrios aquelas palavras enigmáticas o excitavam como nunca. E para todos o único motivo pelo qual Josué se envolvera com aquela mulher era para provar sua valentia, já que todos comentavam que Luana atraía a morte para seus amantes. Na realidade não era o gosto por aventuras que levara o rapaz a ela, mas uma atração por seu porte sereno e altivo misturado a uma paixão de infância por Mortiça Adams.
Já eram tantas flores que deixavam atrás de si uma trilha de crisântemos e cravos amassados. A noite comia as lápides quando pararam em frente um túmulo. Luana acendeu velas, era o túmulo de Jorge, o ex-noivo que morrera estraçalhado por cães ao pular o muro errado na tentativa de fazer uma serenata.
Ela forrou todo o espaço com as flores e ordenou que Josué se deitasse. O moço já sentia pitadas de pavor, mas deixou ser conduzido pelos dedos quentes e logo se amavam sobre as flores. Perdido em gozo, medo e perfume ouviu um tilintar.
_ Não se preocupe, são os ossos de nossos amigos...
Dois acordes do violão de Jorge: ao redor do casal os mortos viam espiar os amantes e buscar de volta suas flores. Josué suou frio tentando asfixiar sua covardia ao ver tantas caveiras dançando alegres. Nem reconheceu vó Bentinha, Marcão, o velho Juvêncio, entre outros defuntos conhecidos...
Tão pouco se divertiu em sua festa de boas vindas!

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Santa Cecília pela noite adentro

Quando Cecília se mudou para São Paulo foi morar em Santa Cecília. Às vezes, entre as vastas horas em que se sacrificava no violoncelo, detinha-se numa identificação profunda com a santa: Sentia a voz sair límpida na garganta sufocada, os golpes de espada que não impediam a canção e a dor entrelaçada de seus próprios dedos já trêmulos no fim do dia.
Talvez por isso atraísse anjos novamente para si.
E depois de tantos anos eles voltavam ainda mais travessos que nunca, Cecilia mal podia dormir com o barulho de asas em sua janela e a bagunça que faziam em sua varanda.
Uma noite, a ansiedade da prova da orquestra e a solidão da metrópole despertaram uma profunda revolta: Para o Inferno com aqueles Serafims safados! Envolta por maquiagem sombria e seu vestido mais indecente ela partiu decidida a flertar com os demônios.
E a noite se abriu na fartura de pétalas gordas, evocando nela um perfume inebriante de amor abandonado.

(imagem de Barbara Rogers)