sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Poema de vento e mar

Encomendado por Amadan
Quando finalmente chegou a vez Dela sentiu a ânsia de sua vida desabrochar com o vento e o cheiro de mar. Lembrou de seus sonhos de infância, quando tudo o que queria era ser um avião ou barquinho de papel. Agora, em sua hora de estrela Ela sofria diante da incerteza. Poderia se tornar puta ou santa nas mãos daquele Deus.
Todas as folhas daquela cadernetinha sentiam que Ele era poeta e salivavam no desejo de serem relíquias em algum museu do futuro. Umas se tornavam oráculos por conterem anotações misteriosas, sentindo-se o útero da obra-prima. Outras mais bem-aventuradas exibiam um poema inteiro, carnudo e límpido em seu corpo. O restante vivia a frustração de ser mera lista de compras, rabiscos de contas a pagar ou telefones inúteis.
Mas Ela teve a revelação logo que sentiu o vento e o cheiro do mar.
Afinal poetas não escalam rochedos para escrever banalidades!
E Ele começou vagaroso, mas não derramava palavras, porém carícias de amante através de contornos que se teciam em formas indefinidas. Tamanha era sua lentidão e leveza que se perdeu eterna no gozo de divindade recém-nascida.
Mas o vento súbito arrancou a folha com violência, e enquanto se tornava redemoinho chorou ao sentir-se o aborto do Grande Poema. Até que no último suspiro explodiu na alegria do sonho de infância: pairou vários minutos em vôo indomável, mergulhou em pouso suave e morreu com grandeza de naufrágio.
Quanto ao poeta, sempre dizia aos amigos sobre o melhor poema que escrevera. Covardemente roubado pelo deus dos ventos
.
(imagem de Turner)

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Nota

As encomendas do Fast Fabula Delivery já estão a caminho, serão entregues na ordem dos pedidos.
Hoje gastei o tempo de postar na Mostra Internacional de Curtas... dia de repor o estoque!

Lembrando que ainda existe uma encomenda a ser feita, o segundo comentário é um fantasma, portanto temos no momento quatro pedidos.

Abraços calorosos...

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Uma Menininha Triste

para Dé
Era uma menininha tão triste que aqueles a sua volta já nem sabiam o que fazer para consolar. Mas ela não exigia isso de ninguém, sabia que nela as lágrimas eram irremediáveis e passava o tempo tentando fazer bombons, que ainda assim pareciam não agradar ao paladar de ninguém.
Recebia visitas constantes da Morte, que para ela surgia na forma duma opulenta senhora. Era sempre o mesmo diálogo:
_ É hoje que me leva?
Ao que a morte retrucava cínica:
_ Nada, estou só de passagem.
Já para a Loucura a menininha tinha uma queda, tanto que com essa não contentava em meros flertes e rolavam no chão em meio a um amor desvairado.
Foi então que a Loucura teve uma forte compaixão e pediu que a Vida fizesse uma visita à menininha. A Vida chegou para ela como uma mulher mirrada e fraca, segurando debaixo dos braços uma caixinha.
_ É isto que te trago...
Disse a Vida num tom humilde. A menininha abriu a caixa e lá estavam apenas suas lembranças.
As boas, velhas e doloridas lembranças... o que fazer com aquilo?
Misturou então lágrimas, lembranças e chocolate em deliciosos bombons meio-amargos, que despertavam bonitas inspirações a quem os soubesse apreciar!


(a imagem é uma foto de uma das peças da série "Guardados" de Débora Peron, visitem seu fotolog, onde ela expõem fotos de roupas que customiza artisticamente, o link está ao ao lado, no "Confabulando")

As Aventuras do Coelho Mascarado


O coelho mascarado é um justiceiro, mas ele não sabia desse potencial até cair-lhe a máscara. Literalmente! Numa terça-feira obesa de carnaval, em plena Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro, quando ele era ainda um boêmio incorrigível e estava pulando entre fadinhas, colombinas, sátiros, rinocerontes e vários bichinhos mágicos. Estava inclusive sobre efeito de uma bebida misteriosa que a Mulher-Mandioca dera-lhe de presente. Então a máscara caiu junto com ele na sarjeta.
Quando acordou a máscara já era tão parte sua que nunca mais a tirou do rosto.
Pela manhã um pimpolho pelado e gordinho que parecia um verdadeiro anjo da anunciação falou que ele ficava irresistível com aquela máscara.
Aí aconteceu sua iluminação…

domingo, 26 de agosto de 2007

Fast Fábula Delivery


Dali

Um joguinho para inaugurarmos a nova página do Fast Fábula...
Nossa máquina de Fabulações em ritmo de fast-food entrega a história que vocês pedirem...
Os cinco primeiros leitores a comentarem este post poderão encomendar uma história! Basta dizer no comentário que tipo de história gostaria, fornecendo todos os detalhes que achar relevante... sintam-se livres para testar e desafiar este escritor, a sugestão pode ser apenas uma frase como: quero uma história com duzentos gatos persas ou gostaria de uma fábula que retratasse a dura vida de pescadores em dias de tormenta...

(qualquer coisa que instigar vocês)

Não há pudores nem restrições aos temas, enredos ou personagens que vocês pedirem, apenas não vou desenvolver textos pornográficos, porém nada contra textos sensuais ou com uma boa dose de erotismo...
Vamos lá, quem entra no jogo?

Era uma Casa I - O Desejo de Virgínia

Virgínia tinha o desejo de uma casa grande e misteriosa, seu marido Martim particularmente não fazia questão, era um homem simples e gostaria de mudar-se para o interior, ou quem sabe para o litoral, mas a tudo isso Virgínia era indiferente, já que decidira não sair mais de casa. Era uma artista deprimida e dizia precisar de uma casa onde pudesse às vezes se esconder.
_ Essa casa tem que ser todo o meu universo!
Depois de visitarem muitos imóveis aquela casa parecia projetada nos sonhos de Virgínia. Martim temia muito pela sanidade de sua esposa, mas não podia resistir ao encanto de seus olhos quando suplicavam, ainda mais depois de ver a euforia dela correndo pelos corredores, desaparecendo num cômodo, ressurgindo em uma escadaria, deixando ecos de seus gritos...
Mas Martim não tinha recursos suficientes, havia apenas uma pessoa que poderia emprestar dinheiro a eles. Ainda estava na casa quando fez então a ligação decisiva: sentiu muito medo quando ouviu o prolongado simmmm de Tia Pecúnia...

(segundo capítulo vem na próxima semana, imagem de Munch)

Era uma Casa


Logo quando mudaram perceberam que aquela não era uma casa comum. Eram tantos cômodos que se enchiam de prazer mesmo ao perder-se dentro de seus mistérios.
Mas aconteceu que de repente a casa não era mais deles.
Isso começou quando os velhos amigos de sempre chegaram para a festa de inauguração e não foram mais embora.
Não se importaram porque afinal a casa era grande e abrigava a todos. E por um tempo era como se nunca se interrompesse a alegria desvairada da festa.
A confusão começou quando resolveram trancar Gregor no porão...
Gregor parecia ser o motivo de toda discórdia que ameaçava o clima festivo: ele reclamava de tudo, lançava indiretas maliciosas e começava a mostrar um mau-humor intolerável.
A decisão foi unânime e não hesitaram mesmo quando viram o pobre debater-se e suplicar que tinha medo de escuro, tão pouco recordaram que Gregor era um dos donos da casa.
Mas assim que bateram a porta pesada pouco tempo de alívio puderam respirar, já que uma dúvida terrível assolava a todos:
Quem seria o próximo a ser trancado no porão?

sábado, 25 de agosto de 2007

A Outra


Magda podia conviver com qualquer um de seus problemas, mas não podia aceitar aquela outra que morava dentro do espelho.
Descobriu isso numa tarde em que apenas experimentava sapatos, quando inocentemente percebeu que aquelas pernas não eram dela.
_ Me desculpe... mas essas pernas não são minhas...
A lojista respondeu:
_ Quanto a isso nada podemos fazer madame, aqui não vendemos pernas.
A partir de então a outra passou a ocupar-lhe o reflexo. E mesmo que Magda a enxotasse com insultos e ameaças a outra pouco se importava, encarando Magda com ar de desprezo respondia ríspida:
_ Morra de inveja! Sou mais bonita!
Sem suportar tal despeito Magda retirou todos espelhos de sua casa e resolveu que a partir de então nunca mais veria sua imagem. No começo foi estranho, mas rapidamente se viu tão despida de vaidade que resumiu todo seu guarda-roupa a singelos vestidos azuis.
Um dia passou por acaso perante um espelho e viu que a outra não estava mais lá, ao invés dela havia uma mulher simples e insossa de olhos cândidos.
Apaixonou-se tão perdidamente que voltou a maquiar-se e vestir-se com esmero para seduzir a todo custo aquela nova mulher!


(imagem de Picasso)

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Tio Ludovico

Em sua loja tio Ludovico vendia de tudo: livros velhos, móveis antigos, brinquedos, fantasias. Quando criança tínhamos o grande privilégio de brincar na loja quando ele encerrava o expediente. Então tio Ludovico se trancava no escritório e nós vislumbrávamos aqueles mundos ao alcance de nossas mãos! Criávamos uma infinidade de monstros e segredos, às vezes passando tanto tempo dentro do depósito ou dos guarda-roupas que confundíamos nossas identidades.
Então eu percebi que podia trocar minha realidade por qualquer uma daquelas fantasias da loja. Assim escolhi ser o príncipe de um país inventado: eu morava então num palácio gigantesco e tinha todos os míseros desejos atendidos por uma legião de servos. O único elo que tinha com a vida que abandonei era a loja de Tio Ludovico, a quem nunca deixei de fazer visitas semanais, pois ali encontrava artigos exóticos e conhecia os mais variados viajantes.
Os anos se passaram rápido em meu reino, já era o príncipe regente daquela terra quando aconteceu um encontro inesperado. Estava na loja do Tio Ludovico e fui interceptado por uma mulher. Seu olhar era triste e familiar, ao mesmo tempo carregado de uma esperança cega. Não entendia o que acontecia e perguntei se estava tudo bem, ela disse que não, que nada estava bem para ela há mais de vinte anos, quando seu filho entrou naquela loja e nunca mais voltou. Sorri um pouco sem jeito e disse que nada podia fazer por ela, mas a mulher me olhava ainda, como se em mim o tivesse encontrado. Pensei em fugir da loja, mas aquele olhar me petrificava. Perguntei a ela se por acaso não queria vir comigo para meu reino, onde eu também era um filho que perdera a mãe. Ela finalmente foi capaz de sorrir, agradeceu minha oferta e disse que jamais trairia seu filho, mesmo que ele estivesse morto.
Vaguei horas pelas ruas naquela tarde, algo em mim mudara depois daquela mulher, sentia-me confuso e tentando a lembrar da vida que abandonara, mas era inútil, na verdade não sabia mais quem eu era nem de onde vinha.
A loja de tio Ludovico era a única reminiscência de todo aquele passado. Então pensei: devo procurá-lo? Devo abandonar meu palácio e encontrar o que realmente sou?
Com muito dor tomei uma decisão: ordenei que meus guardas expulsassem Tio Ludovico para sempre de minhas terras.
Agora todas as noites sonho com um monstro horrendo que me devora.

(imagem de Miró)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Um Fantasma


Mesmo depois de morta Joana não conseguiu aplacar o rancor que nutria de seus familiares.
Resolveu então que seria um eterno fantasma na vida do marido, dos filhos e netos... sempre lembrando-lhes o quanto foram displicentes com seus sentimentos e como sacrificara toda sua felicidade por aqueles que nem foram capazes de construir-lhe um túmulo digno!
No começo todos se assustavam, mas reconheceram suas falhas e decidiram homenagear Joana com um mausoléu belo e aconchegante. Porém mesmo assim Joana reclamava: o mármore branco sujava muito, as flores eram constantemente roubadas, o sol era forte demais no começo da tarde... Tantos eram os caprichos que todos acabaram dispondo grande parte de seu tempo cuidando da beleza e asseio daquele jazigo.
E enquanto eles estavam no cemitério Joana respirava aliviada...
Encostando-se preguiçosa no sofá finalmente apreciava a harmonia de sua casa.

O Sonhador


Era um sonhador não por ser escravo de desejos inalcançáveis, mas simplesmente porque não conseguia parar de sonhar quando acordado.
E quantas maravilhas e pesadelos vivia em plena vigília!
Porém sofria, desde criança. Era tido como louco até pelos pais, que várias vezes tentaram internações em hospitais psiquiátricos, tratamento com drogas fortes e eletrochoques...
Ainda assim o perseguiam as figuras oníricas, hora atormentado por um duende, pego em conversas com uma tia morta, ou ainda gritando de medo ante uma serpente dançando em seus pés.
Tanto sofria que com quinze anos resolveu se matar!
Preparou-se para um ato definitivo, subiu ao topo de seu prédio, no vigésimo andar, e até sentia o coração em disparate quando saltou:
Mas qual foi sua decepção ao abrir os olhos!?
Ao invés de se arrebentar seu corpo simplesmente planava, com a leveza de uma pipa sobre o infinito de um céu macio.