sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Passeando com Jesus no Inferno


Estava eu num ônibus meio cheio quando reparei que ao meu lado uma mulher lia uma espécie de apostila. Como de costume quando não estou eu próprio lendo nos ônibus, estiquei os olhos só para ter o prazer de bisbilhotar a leitura alheia. As palavras inferno, fogo, enxofre e Jesus me chamara a atenção, acabei me divertindo lendo um pouco daquela literatura apesar de tão mal escrita e tão pouco original. Pelo que pude perceber o texto tratava de um relato real (não tão real quanto meus contos, com certeza) de uma pessoa que sofria pela morte de outra muito querida e que em vida fora herege. Aí Jesus apareceu uma noite e sorridente convidou o narrador do texto a testemunhar o inferno. Eles passeavam e Jesus mostrava cenas de intenso sofrimento, nada do que a humanidade não tenha descrito sobre inferno desde a Idade Média: fogo, enxofre, demônios rosnando, chicotadas, etc... e Jesus lá, mostrando tudo como um guia turístico, e a pessoa tinha tanta empatia com o salvador que ele até já adivinhava seus pensamentos. Ela viu seu ente querido mergulhado num fosso de bosta e sufocado por seu próprio choro. Então Jesus gentilmente explicou:
_ Não há saída para ela...
E depois uma legião de demoniozinhos passou por eles, comandados por um demônio enorme (a descrição dos demônios foi o que achei de mais legal); o grande era tipo um urso, com uma cara enorme, como de morcego, presas para cima e chifres é claro, os menores pareciam macaquinhos de braços longos, alguns com nariz comprido, outros com cara de bichos variados, uns sem chifre. E o passeio seguiu até chegarem a um homem dentro de um caldeirão que ficava recitando o evangelho desesperadamente.
Bem, queria até ler mais um pouco só pra recapitular os velhos clichês do inferno, mas a mulher lia muito devagar e eu tive que descer.
É interessante como eles gostam do inferno! Lendo principalmente a descrição dos demônios entendi que é como o prazer de ler uma história de terror, porém com a emoção ainda mais intensa porque para eles tudo é real! Qualquer pastor pode dizer que passeou no inferno e jogou uma peladinha com Jesus que ninguém duvida.


(na imagem um dos infernos de Bosch, que são os mais legais e criativos de todos)

Mudando radicalmente de assunto gostaria de avisar que a grande promoção Fast Fábula Delivery terá sua segunda edição. Para quem não sabe foi uma brincadeira onde pedi que os leitores encomendassem a história que quisessem, o que resultou em alguns dos textos que mais tenho orgulho até hoje. Quem quiser conferir estão todos entre agosto a novembro do ano passado, alguns entraram para a antologia do blog. ENTÃO AGUARDEM ! ESTÁ PRA SAIR A QUALQUER MOMENTO! Agora, deixo de presente para o fim-de-semana um clipe da Cat Power em sua época menininha. Cross Bones Style!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Amor eterno


Gostava muito da presença de seu amante, tanto que sem ele perceber ou reagir foi carinhosamente prendendo-o em seu quarto. Sempre que ele fazia menção em ir embora ela pedia que ficasse um pouco mais, oferecia as frutas secas que tanto gostava, vinho e deixava o leite de seu seio tão doce que ele mais uma vez adormecia em seu colo.
Com o tempo criou uma eternidade no cômodo! O próprio amante, antes genioso e aventureiro, foi se transformando numa criatura plácida e silenciosa que deixava o mundo correr janela afora. E o desejo dela, antes difuso e cruel foi se transformando em bicho calmo, manso e enjaulado.
Então vieram épocas dispersas, movimentadas e ela quase se perdia entre seus objetos e compromissos. Uma noite, enquanto procurava um vestido esquecido na bagunça do quarto encontrou o amante, também esquecido debaixo de uma pilha de roupas. Seu coração estremeceu, olhou no relógio e concluiu que havia tempo antes do baile.
Cuidadosamente retirou dele o excesso de poeira e com muito amor o colocou dentro do guarda-roupa, entre seus vestidos de festa e duas antigas amigas de juventude.



(imagem de Magritte)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Zeitgeist


O que está por trás de nosso querido mundo de falsidades? Quem são os homens por trás das cortinas que massacram a vida de milhões para aumentar as dimensões já imensuráveis de sua fortuna? O que nos faz tão vulneráveis, alienados, cegos e submissos a uma exploração de séculos? Poderia o governo americano matar seus próprios cidadãos para criar um inimigo imaginário que justificasse a invasão aos países que bem entendesse? Estas são algumas das questões que o documentário Zeitgeist aborda, apontando para um futuro ainda pior do que poderíamos imaginar. Alguns chamarão o filme de sensacionalista, mas ainda assim recomendo veementemente para todos, nem que seja para gerar uma calorosa discussão em sua sala de estar ou ainda para que paremos um pouco para refletir sobre nossa condição humana primordial, do qual nos distanciamos cada vez mais pela busca por dinheiro e pelos prazeres ofuscantes do mundo do consumo. Depois do turbilhão vertiginoso de informações fico com a mensagem final: A REVOLUÇÃO É AGORA!

(não é difícil encontrá-lo na internet para baixar... coloquei o link do site oficial do filme, onde é possível assisti-lo inteiro e com legendas ou procurem no site makingoff.org)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O pingüim de televisão ou como ser um apresentador de TV bem sucedido


Em primeiro lugar esqueça faculdades de jornalismo, escrita e erudição. O negócio não é a linguagem do povo? Então nada melhor do que um apresentador truculento e fanfarrão. Alborgueti, Datena, Faccioli e neo-fascistas em geral são seus mestres agora. Engome seu corpo com um terno rechonchudo ao ponto de parecer um belo pingüim e treine sua capacidade de ficar nervosinho, de mostrar sua revolta em nome da família, de deus e do povo brasileiro. Pratique também a sutil arte de repetir várias vezes a mesma notícia, cujo segredo vai muito além do refinamento de linguagem ou a variação de vocabulário, dê seu show: fique vermelho, ande de um lado para o outro, grite, esmurre as paredes, faça piadinhas preconceituosas, xingue em pelo menos três sotaques e pronto! Estará a um passo de conquistar o horário das oito da manhã ou seis da tarde, justamente quando nosso povo senta para comer e resolve ver o que afinal está acontecendo de terrível e calamitoso em nossa metrópole (e ai que bom que estou vivo e quentinho no meu lar). Agora o mais importante: não perca tempo procurando notícias, pra que correr atrás de furos ou grandes histórias se os crimes mais elaborados são os que a gente mesmo cria? Agatha Christie que o diga. Então pague uma graninha qualquer para uns moleques quebrarem uns vidros de carro ou empurrarem velhinhas do viaduto e pronto! Já estará a um passo de ser mais um fenômeno de nossa mídia.



(imagem de Botero)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Dos fragmentos da lua


Que se espalhou entre os estilhaços de vidro e pairou gorda pela sala. A cidade era então plácida e respirou aliviada apesar de tantas chagas, as atrocidades do jornal se desnudaram em ficção de baixo nível e nossa querida descrença se tornava esquecimento. Tínhamos um instante de grandeza perante as orelhas monstruosas do mundo:
As marés se agitaram em reverência à segunda lua que nasceu.


(imagem de Fuseli)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Antes de Cecília


Fel andava um tanto entediado.
Era um tédio que sufocava seus dias num mofo denso e áspero que avançava lento das paredes para sua pele, criava-lhe olheiras de desesperança, mascarava sua alegria numa amargura estúpida, tornava seu cotidiano tão insípido que o esvaia de seus prazeres mínimos.
E desse lodo começaram a surgir os misteriosos sinais: a cafeteira que lançou um uivo pungente e explodiu em café por toda a cozinha, o gato cinza que reapareceu e cuspiu uma concha minúscula em sua sala, o sonho onde esperava uma mulher que não conhecia. Eram presságios! Estranhos oráculos de um cético que agora se concretizavam naquele aconchego insólito.
Eram praticamente desconhecidos ainda.



(imagem de Débora Peron)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Auto-Retrato


Hoje, depois de um tanto de insônia, hand of god, vozes altas de bêbados discutindo na rua, um capítulo agitado do Idiota, personagens mutilados, ataque de cupins no meu quarto, dentre outras tempestades cotidianas pinto um auto-retrato onde sou um peixe míope e saltitante cantando para nossa sexy paulicéia:
_ Capitalismo! ME PESQUE!

(na imagem auto-retrato de Mark Lockwood)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O salmão e o grande amor


Depois de muitas histórias sobre Madame Verônica Anita resolveu comprovar a competência da cartomante. Sua questão era a mesma em todos os oráculos que consultava:
_ Quando virá meu grande amor?
_ Será o homem que te chamar para jantar e lhe oferecer salmão.
Algum tempo depois Anita foi trabalhar na recepção de um hotel internacional e devaneava horas tentando adivinhar qual daqueles gentis-homens e celebridades faria o convite sagrado. Chegou algumas vezes a se insinuar para alguns senhores solitários, sempre lembrando que o salmão do restaurante era impecável, e uma vez foi até jantar com Marcus Casanueva, o ex-galã, que tinha horror a qualquer peixe e pediu talharim.
Aconteceu então que numa noite insossa, onde perdia seus pensamentos em outras fantasias, foi convidada para comer com Pablo, um garçom simpático e jovial com quem vez ou outra trocava algumas palavras. Era fim de noite e comeriam os restos de um jantar pomposo. E finalmente veio o bendito salmão! Já um pouco frio e com um sabor terrível de predestinação. Anita sentiu uma fisgada no corpo, estava já tão carente e sonolenta que se entregou ao moço, porém o renegou no dia seguinte. Pablo gostava dela e até insistiu por um tempo, mas Anita permaneceu impassível, flertando desesperadamente com qualquer bom-partido que tivesse oportunidade.
Anita foi muito infeliz.

(imagem de Nan Cuz)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Máscaras


Carnaval já me trouxe medo, na infância tinha aflição com as caretas de máscaras de borracha, estas que hoje são tão insossas. Tinha medo também da Maria Ojeriza: um homem correndo atrás das crianças vestindo uma espécie de boi-bumbá deslocado. Depois veio a timidez da adolescência onde qualquer convite à liberdade mais parecia armadilha. Por fim venceu a indiferença e pouco me importava se tivesse alguma agitação ou apenas descanso naquele feriado gordo. Ano passado me caiu uma máscara no Rio de Janeiro, onde pude finalmente fazer as pazes com o Momo, liberando a pureza do verbo: brincar! Este ano foi só aconchego e quietude, atravessado apenas por um bloco descendo a Augusta que não me animou a seguir nem um quarteirão. Somente na quarta-feira-cinza me vejo pintando essa máscara (era uma oficina de rua) e de repente o carnaval ganha uma vida breve, quem sabe se para ser a fantasia de algum futuro ou o souvenir de um carnaval que mal aconteceu.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Epifania


Quando o menino descobriu a concha ficou intrigado com aquele pequeno objeto que carregava o mar inteiro dentro de si. E tanto o trazia junto ao ouvido que em pouco tempo já percebia claramente o canto das baleias, o movimento dos cardumes e até fofocas de sereias. Maravilhado com aquele pequeno grande mundo que cabia entre as mãos resolveu um dia fazer uma experiência: encostou um diapasão vibrando na ponta mais sensível da concha e mal pôde tomar fôlego diante da torrente de água e peixes.
Seu mundo irrompeu num esplendido maremoto.

(imagem de Phil Clarke)