quinta-feira, 26 de junho de 2008

Fumaça fria


encomendado por um bruxo doido

Essa história começa com uma maldição! Teria apenas dois dias para escrever esse conto senão morreria. Seria apenas uma praga? E por que não atender também as encomendas malditas? Então que venha uma personagem maldita: É uma mulher de olhar vago e intenções bondosas chamada Luana. Era o primeiro dia de inverno em São Paulo, num ano em que a estação entrou com garras ávidas e ela sentiu um ar envenenado vindo com o vento. Para livrar seus filhos daquele mal encheu a casa de plantas, entupiu-os de remédio e cerrou definitivamente as janelas. Pensando no natal ela passava seu tempo esculpindo um delicado presépio de biscuit. Quando já quase alcançava um azul celeste magnífico no manto de Maria percebeu que já não havia mais verde, suas plantas se tornaram um amontoado de galhos secos. Lembrou ainda de seus filhos, que já não acordavam há dias.
_ Essa fumaça gelada...
Disse a si mesma num suspiro resignado e deixou finalmente que um raio de sol entrasse.
Com cuidado colocou Nossa Senhora pra secar.


(imagem de David Linch)

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Ouro de Tolo


Tive um companheiro duende. Era um homenzinho de vinte centímetros e orelhas pontiagudas que a partir de uma manhã cinzenta passou a me bisbilhotar. Pouco a pouco palpitava em meu cotidiano e finalmente tornou-se meu grande conselheiro.
Uma de suas principais funções era me avisar quando estava passando o limite na bebida e dar um mãozinha na hora de correr riscos. Noite passada foi assim: era uma rodada de pôquer com apostas altas e muito álcool. O duende demorou um pouco para aparecer e eu já quase saía do jogo, mas na última ficha ele chegou com seu sorrisinho de curinga e a sorte inverteu, mesmo que não tivesse nenhuma carta que prestasse era só seguir suas dicas de blefe.
_ Pode apostar mais alto... Hoje é noite de comemoração!_ ele dizia.
E por fim estava já tão descontrolado e eufórico que não percebi a sutil traição de meu amigo. Apenas sei que acordei de ressaca, sem saber onde dormia e tão pocuo lembrar o fim do jogo.
Só sei que o espertinho fugiu com todo o ouro enquanto eu roncava um sono pesado de bêbado.

(e mais um Goya pra vocês)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Ciranda: Lúcio


Lúcio rapidamente se acostumou à corrente, afinal, ele e o mundo estavam já cansados um do outro. Portanto a vida era mais cômoda estando acorrentado à cama da amante, que lhe fornecia amor e proteção. Com o laptop no colo ele podia tranquilamente espiar o mundo no aconchego de não fazer parte dele. Sentia-se então mais poderosos que nunca, ainda mais intocável, limitando-se a fazer suas transações pela rede. Às vezes perdia toda sua noção de tempo, entragando-se a uma paz indizível na sensação de que passavam anos sem que visse o rosto de alguém. Mesmo o frio aço da corrente, que pouco a pouco começava a fazer parte de sua carne, tanto que já era capaz de sentir coceira nos grilhões.

Recebeu poucas mensagens de Laura nessa época, nada muito além de xingamentos histéricos e ameaças que só poderiam provocar risadas, afinal, também o nome dela não podia ser mais do que uma palavra qualquer, rabiscada no cabeçalho do e-mail.


(na imagem um Prometeu acorrentado de autor ignorado)

terça-feira, 17 de junho de 2008

Queridos monstrinhos



Esses demônios, que assumem hoje tantas formas, já receberam tantos nomes, já foram duendes, diabinhos, sacis, ETs e quase sempre surgem do meio de sombras. O que há na escuridão que fomenta nosso medo? Será simplesmente a inquietação diante daquilo que está encoberto? Oculto? E o que explica o prazer peculiar em ver coisas estranhas? em sentir um pouco da excitação toda especial de fantasiar monstros na penumbra?
Nossos queridos monstrinhos!


(imagem de Goya)



E neste fim-de-semana assisti um dos melhores filmes de minha vida que aqui recomendo veementemente: A Hora do Lobo de Bergman. Um mergulho terrível e profundo dentro de um pesadelo... há muito que um filme não me trazia sensações tão intensas, acho que desde os filmes de terror da infância, quando o mundo ainda era tão misterioso.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O Mito das Amoras


Houve um tempo em que as amoras eram brancas,mesmo quando muito maduras cobriam a grama em flocos adocicados. Nesta mesma época viveram Píramo e Tisbe, dois jovens vizinhos e apaixonados, porém vedados desse amor por proibição dos pais. Morando em casas vizinhas, conversavam por um buraco na parede. Entre tantos lamentos e soluços resolveram uma noite fugir juntos.
Marcaram de se encontrar à noite... ao pé da amoreira.
Tisbe chegou primeiro, correndo furtiva, ocultada pela noite e por um véu. Enquanto esperava o amado viu que uma leoa se aproximava ao longe e correu para se esconder numa gruta, mas deixou que seu véu escapasse na fuga. A leoa faminta encontrou o véu de Tisbe e o estraçalhou. Quando Píramo chegou e encontrou o resto do véu de sua amada acreditou que ela estivesse morta, em desespero o jovem cravou sua espada no ventre, caindo juntos às raízes nodosas da árvore. Quando Tisbe voltou também não pôde suportar a fatalidade... retirou então a espada de seu amado e também se matou.
O sangue de ambos fecundou a terra, e as raízes da grande árvore absorveram o fluído de sua desgraça. Nunca mais as amoras foram brancas... mas vermelhas cor-de-sangue... quase negras na intensidade da história de Príamo e Tisbe que se tornou eterna.
Nunca percebeu que a amora tem um gosto inconfundível de Grande Amor?




(imagem superior de Abraham Hondius)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Cantilena torta


Se um ladrão de sonhos se aproxima nossa noite contrai um gosto inevitável de ausência, e num pestanejar o mundo já se torna dia.
Quando os sonhos nascem invertidos não há canto que tire das sereias um fedor insuportável de peixe apodrecendo.

(imagem de Magritte)

sábado, 7 de junho de 2008

Musa da vez

Queridos, estou profundamente decepcionado com este blog, não somente porque o número de postagens diminuíu drasticamente desde janeiro, mas também porque falta ficção, falta (ins)piração... claro que nem tudo é assim... tenho gostado muito da série Ciranda, e embora esteja apenas aquecendo, já tenho tido algumas surpresas com esses personagens inesperados. Parte de meu pequeno descaso com o blog é justamente a falta de tempo por causa do novo trabalho, mas não quero mais que isso seja desculpa, portanto esta é a última vez que uso isso como argumento. Tenho que aceitar minha sina de blogueiro e lutar até minhas últimas forçar para manter os poucos leitores que tenho. Então decidi que realmente vou dedicar mais, a todo custo, contando com a ajuda de coisas pequenas e fragmentos que normalmente anoto para futuros posts... enfim... vou estar sempre tentando começar histórias, mesmo que sejam aparentemente meio absurdas, claro que vou lutar para que sejam sempre redondinhas e bem acabadas, no entanto, já decidi que esse blog é um laboratório, caso contrário corro o risco de voltar a enxer a gaveta de abortos por nunca ter tempo de lapidar os textos (alguns podem levar anos neste processo).
Portanto aqui deixo a garantia de que toda a semana vocês encontrarão pelo menos duas publicações, mas vou esforçar para que sejam três, nem que uma delas seja o esboço do esboço. Quero deixar claro também que não esqueci minhas queridíssimas encomendas, porém desta vez elas estão mais difíceis, sem falar que tenho muito carinho pelos leitores que pediram para fazer uma coisa que não considere de muito valor.
Por agora deixo vocês com a divina musa desta semana... Nina Hagen... acho que ela representa alguma coisa livre e extravagante que precisa de alguma maneira sair.
Que a força esteja conosco!

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Carpe Diem ou no meu caminho tinha uma passeata



As manifestações populares de hoje parecem mais uma festinha do que uma mobilização verdadeira. Quando morava na Rua da Consolação eventualmente escutávamos uma grande agitação e corríamos pra janela: era mais uma passeata. Naquele tempo de recém-chegado a São Paulo era muito divertido observar essas coisas que a gente não vê muito no interior. E qual era o protesto do dia? Uma hora era contra o presidente, outra hora era a favor, noutra vinha uma sobre maus-tratos de animais e até passeata de anões meus amigos juram que viram.
Naquela época as passeatas estavam na moda, não passava semana sem que houvesse uma. E tanto era o clima de festa que uma coisa que a gente mais achava engraçado era ver os homens em cima do carro de som mexendo com nossas vizinhas, que eram prostitutas (como eles percebiam? Olhando eram mulheres comuns, parece que eles farejavam). No fim restava ainda um sentimento bom de simpatia com o ato da manifestação popular em si... mesmo sabendo que na prática não resolviam muita coisa.
Ontem foi diferente.
A passeata estava exatamente no meu caminho, tomando a via em que pego ônibus todo dia para o trabalho.
Greve de quem? Aumento de salários? Vigilantes?
Que nada! Alguém que tirasse aqueles baderneiros de meu caminho porque agora ia ter que pegar um ônibus na Augusta entupida e talvez até descer antes se o trânsito estivesse muito parado.
E lá iam eles... felizes... aproveitando um dia de greve.








(imagem de Tarsila)