terça-feira, 20 de maio de 2008

Sobre esboços e afins


Nesta semana sofri algumas contradições, ao mesmo tempo em que a cabeça parecia desabrochar fantasias faltava a energia necessária para misturar os ingredientes mágicos desta coisa que é a ficção. Uma das causas disso é porque a fatia mais gorda de minhas energias acaba ficando para o trabalho remunerado enquanto a escrita sempre tenha que ficar para outras horas.
(preciso entender também que essa é a função da insônia em minha vida, é o momento inevitável de sentar pra escrever, não para ficar revirando na cama e contando quantos gritos escuto do leão-de-chácara do puteiro pela madrugada)
Fez parte dessa peleja a encomenda que entreguei sábado, estava muito incerto quando publiquei, com a sensação terrível de que a coisa não está pronta, de que não é isso! Embora já tenha sentido essa mesma sensação em outros contos que hoje estão entre os mais queridos. A vontade de apagar o conto era forte, abortar silenciosamente o pequeno feto antes de qualquer suspiro. Depois reconsiderei, de certa forma é desnecessário, penso que a proposta do blog de qualquer pessoa que tente fazer da escrita uma prática em sua vida é criar (também) um laboratório... então porque não deixar registrada a primeira versão de um texto? mesmo que você tenha a certeza de que ele está ainda um pouco torto?
Em suma: não estou satisfeito com a encomenda “O Senhor do Tempo” e pretendo trabalhá-lo melhor, apesar de manter essa versão inicial publicada. Obrigado a todos os bons comentários abaixo e mais ainda às críticas agudas que tive o prazer de receber, embora ficaria ainda mais feliz se seu autor as colocasse aqui à vista de todos.
E para o deleite e inspiração de vossas mentes deixo aqui uma cena que mostra a feliz união de Shakespeare a Peter Greenway...




sábado, 17 de maio de 2008

O Senhor do Tempo


encomendado por Dani Scalon
Desde menino os relógios eram um mistério para ele, que passava horas tentando apreender o segredo do tempo observando os ponteiros que aparentemente estavam sempre inertes, mas mudavam de número quando não se estava olhando: o que era o tempo afinal? Por que às vezes tinha a sensação de que ele não existia? Seria o tempo escravo dos relógios?
Foi aí que começou o encantamento.
Cresceu fascinado por aquelas máquinas e começou a destruí-los na esperança de libertar o tempo, nascendo a idéia de que quem controlasse os relógios teria o poder também sobre o tempo. Pouco a pouco foi se familiarizando com os mecanismos, os formatos e até a História dos relógios o fascinava. Sua paixão maior era a delicadeza dos relógios pequenos.
Porém era muito novo ainda quando começou o tremor de suas mãos. Mesmo já dominando todos os detalhes da estrutura agora as peças escapavam-lhe lépidas. Desesperado foi buscar a cura daquele tremor e descobriu que era apenas o começo, estava com uma doença degenerativa que lhe tiraria a vida antes do tempo.
Se antes queria libertar o tempo agora nutria uma forte revolta, sentiu-se traído e empenhou seus conhecimentos para fazer o esboço de um relógio perfeito, que conseguiu desenhar com a ajuda de outras mãos e multiplicar, criando a maior fábrica de relógios de seu reino. Todos os cidadãos tinham um de seus produtos que já carregavam o germe de sua grande vingança: Na mesma noite que morreu, já envelhecido e incapacitado apesar de tão jovem, nem precisou de um último gesto para desencadear a revolução dos relógios.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Ciranda: Nádia


Ela só queria dormir, mas todos os olhos que pousaram sobre ela a condenavam. Lembrava muito bem do desprezo dos enfermeiros e do próprio médico, que insinuara o fato de que duas emergências tiveram que esperar por causa de uma menina mimada. Na hora ela tentou falar que não quisera se matar, mas sua voz não saía no meio da maciez de todos sedativos que tomara. Apenas ouvia ao fundo a voz pastosa se distanciando, sentindo uma pequena revolta por não poder se defender, por não poder gritar que já estava há uma semana sem dormir e sua cabeça elétrica, para seu desgosto sempre tão cheia de vida, pedia inutilmente por algumas horas de sono.
Martinha, a mãe de Nádia, veio correndo com a notícia, estivera trêmula na direção e quase bateu o carro duas vezes. Imaginou a manchete: Filha tenta suicídio e mãe morre ao caminho do hospital. Fez sinal da cruz duas vezes esquecendo-se que não acreditava em qualquer deus. No hospital deixou a antiga boneca da filha aos pés de seu leito e chorou muito, desabafando uma declaração de amor que era esperada por anos.
Mas Nádia não ouviu, dormia calma e leve como uma menininha.


(a pintura chama: Garota triste com garras e chapéu, mas não descobri o nome do autor)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Curtas de meio de semana IV


1 - Como sempre enfurecido com trânsito, com meu computador à beira da insanidade, com o imposto de renda, o auxílio moradia de 3.800 reais dos senadores... mas isso não fica assim não, o mundo que me aguarde! Esperem só eu abrir minha própria ONG.
2 - Exercito uma espécie de meditação transcendental ao tentar controlar criancinhas apenas pelo olhar calmo e a voz em pianíssimo. Eles podem quebrar o mundo que fico tranqüilinho tocando flauta. A propósito, estou pesquisando técnicas pedagógicas diversas para aplicar em meus pimpolhos, penso até em experimentar hipnose e outras metodologias alternativas, alguém pode me socorrer?
3 - Entro em contato com o único membro real de minha banda imaginária. Revisamos nossa maravilhosa carreira pelo mundo dos sonhos. Será que dá certo tentar uma turnê por aqui? Será que ela não vai perder um pouco de seu charme ao deixar de ser banda imaginária e se tornar real? Aguardem queridos fãs (imaginários também) SPLEEN vem aí!!
4 – E por fim contemplando placidez e beleza na matéria mole do tempo, em transformações sutis de uma coisinha que deixa estrelas nesta rua. Um ano pode ser assim, tão eterno!

domingo, 4 de maio de 2008

Ciranda: Victor


Victor não poderia estar mais vivo que naqueles tempos.
Deixara o mundo parado e estático de sua cidadezinha natal para confrontar o fascínio e a liberdade de viver numa cidade de dimensões infinitas, como se a gigantesca mão de Deus o colocasse delicadamente na borda daquele abismo e dissesse:
_ Toma! Esse mundo é todo seu!
Então delirava na ânsia de que poderia ser qualquer coisa: louco suburbano, mendigo, gênio ou bon-vivant pervertido. Era uma tela branca e luminosa que pouco a pouco se tornava um daqueles seres: tão sombrios, desencanados, drogados, multi-sexuais, extravagantes, tão repletos de tatuagens, piercings, frustrações e melancolia, brindando a degustação dum luto irremediável.
_ Mas por que esse choro?
Perguntou numa noite para Nádia, que vez por outra trocava sua natural apatia por crises de choro convulsas que vinham sem previsão, às vezes em momentos pouco apropriados, como o auge do desvario de festa em que se encontravam.
_ Não sei, as coisas que doem em mim já não tem nome.
Disse ela enquanto uma gargalhada estridente irrompia numa das muitas vozes do grupo:
_ Hahahahahaha... só a Nádia mesmo...

(imagem de Mondigliani)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Ciranda: Teodoro


Durante o dia ele era estátua, e não entendia muito bem sua profissão. Sabia que o desenhavam e sabia de sua capacidade fabulosa de ficar imóvel, desde criança aprendera bem essa habilidade ao se misturar às plantas, à areia da praia, ao mar e iria até céu se pudesse voar. Entendia-se também como alguém que tinha coragem de despir-se facilmente na frente de desconhecidos. De relance Teo percebia que os desenhos eram bem feitos, mas não eram verdadeiramente de seu corpo, nenhum traço sequer o revelava, nenhuma curva era real. Concluía então que se qualquer um daqueles estudantes passasse a noite com ele, o que significaria o dispêndio de um pouco mais de dinheiro além do que recebia pelas horas de estátua, aí sim teriam a dimensão verdadeira de seu corpo, assim como fazia com aqueles que encontrava em suas andanças noturnas. Atravessava bares, clubes, boates e pessoas numa caminhada incessante e tão silenciosa quanto seus momentos paralisados.
No calor imóvel da tarde deixava que então sua alma vagasse eterna e agitada pelo ar, distraidamente não percebia um amor velado sendo moldado através dos riscos de grafite: nas mãos de Vitor ele se tornava um arcanjo de luz e pecado, e se pudesse ver esse desenho que estava tão longe, no extremo canto distante da sala, onde seus braços eram transformados em asas feridas, sentiria uma emoção antiga e estranha desabrochar, tornando-se capaz de romper seu eterno silêncio e finalmente dizer em comoção única:
_ Este sou eu!

(essa é a série nova que lanço hoje no blog, cada semana um personagem dá a mão a outro na esperança de que uma história surja de várias, nada está muito programado, portanto, como sempre estou aberto a palpites e sugestões. Esta semana pretendo também entregar mais uma encomenda da promoção. Não sei o autor da imagem)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Retro-visão


Para Éric, Érica, Dri, Gabriel e Maria (inevitavelmente inspirado pelo seu texto, cujo título tomei a liberdade de copiar)

Pelo espelho do carro corriam ruas perdidas e meio desencontradas, eram ruas que andei muito, ruas que cheiram a desejos e amoras tardias. Que pena não ser estação de amoras! Então lembro daquele tempo em que os sonhos e medos eram colhidos a baciadas. Éramos tão sem grana, mas tão nobres que podíamos nos dar ao luxo de um café da manhã de três horas. Queria muito fugir de lá naquela época e agora aspiro com uma saudadezinha melancólica o cheiro de chuva e terra, enxergando ternura até no mato que brota do cimento velho. Melhor que isso foi ainda o reencontro com as amigas eternas... e ah se a gente tivesse comprado mais uma garrafa de vinho... ah se tivéssemos só mais um dia de feriado... ah se pudéssemos carregar todos no bolso... sempre falta alguma coisa aos adultos nostálgicos enquanto dos olhos do menino derrama-se um oceano de emoções fartas.
Somos inevitavelmente devorados por uma majestosa baleia!


(imagem de Gabriel, sobre os olhos da Maria no retrovisor)