quinta-feira, 27 de março de 2008

Grande promoção em época revirada

Dias de reviravoltas súbitas no cotidiano. Fim de inferno astral vem com um turbilhão de mudanças radicais: pessoas que via toda a semana por dois anos não verei mais, o que era o supra-sumo do mês passado tem que ser dispensado porque outro emprego surge num lampejo, providências desesperadas da época de medo começam a surtir efeito. Projetos mirabolantes sempre ameaçando o grande BUM e uma ciranda desvairada irrompe de uma multidão contagiada, entram na dança gênios, princesinhas, lobos, fantasias lá da infância, vozes psicanalíticas e sentimentos misteriosos que deixam no ar uma incógnita tentadora (e uma vontade quase boba de final feliz)

(arte por Tarsila... desde que fui na exposição estou tentado a usar uma imagem dela, aí vai!)


Aproveito a deixa pra lançar no cyberspaço mais um FAST FÁBULA DELIVERY! Uma grande promoção que funciona assim: peçam histórias e eu tento escrever. Para quem não sabe fiz isso ano passado e foi bem divertido, para ver os contos que resultaram é só ir ao cardápio ao lado e clicar em 'Delivery' que os textos vêm inda quentes. Dessa vez não serão só cinco, serão quantas aparecer. As encomendas serão entregues não por ordem de chegada, mas de reverberação! Única regra: os pedidos devem obrigatoriamente ser postados entre os comentários dessa promoção para serem validados.
E para uma gota de inspiração aqui vai uma canção da Céu que me fisgou essa semana e comunga com o espírito desse blog. Agradecimentos antecipados a todos que participarem!




terça-feira, 25 de março de 2008

O dia do juízo


(final das divagações sobre a obra de Segall)

Magno não acreditava na maldição, para ele seus olhos seriam eternos e a cada noite aumentava a tensão na eterna vigília de Eusébio e Julieta. Quando o dia do sacrifício enfim chegou Conceição já sentia no ar o antigo cheiro de putrefação que marcara sua juventude. Para Julieta tinha algo de perfumado, como sempre imaginava que seria o dia do juízo, para Eusébio era apenas um dia muito úmido, mas com gosto de fatalidade.
Para o resto da população foi um dia de maravilhas!
Por um instante houve paz para os atormentados, e luz nos olhos cegos, até mesmo a velha Conceição descreveu cores no belíssimo manto da santa, que sorria para ela pouco antes de falecer, embebida por um perfume de rosas que irradiou por toda a casa. Então milagres despontaram em primavera pelas ruas da antiga cidade que há muito já não conhecia mais tamanha abundância de vida. Mesmo a cortejo fúnebre de Conceição deixava um rastro de alegria e encantamento. Por um instante ninguém na cidade sentia qualquer dor ou tormento.
E Magno também foi encontrado morto após o velório, mas com os olhos tão abertos! Ninguém conseguiu fechá-los e ainda no fim do dia foram enterrados assim: estatelados!
E todos respiraram ainda por muito tempo o aroma dos milagres. Ninguém mais, nem mesmo a atormentada família de Conceição, pôde jamais se entregar a qualquer maldição.

E assim terminamos esta saga! O próximo post será finalmente o regulamento da promoção FAST FÁBULA DELIVERY. Desta vez atenderemos a uma demanda bem maior de pedidos e teremos regras diferentes. Não perca essa oportunidade de desafiar um pretenso escritor a dar vida a qualquer história que por ventura tenham vontade de ler, principalmente para aquelas que aparentemente ninguém (em são ou insana consciência) escreveria!

quinta-feira, 20 de março de 2008

Dias de peste


(continuação das divagações sobre a obra de Segall)

Toda a maldição começou com uma praga impiedosa.
Conceição, a matriarca da família, era ainda muito nova quando a peste caiu sobre a cidade.
_ É a maldição dos santos por pecados passados...
Gritava o velho profeta enquanto as famílias eram carregadas aos montes e empilhadas nos campos da morte. Dizia-se que Dom Otávio, o fundador da cidade, tomara aquelas terras de antigos monges e agora toda a cidade pagava em chagas e putrefação. Conceição era a única neta de Dom Otávio e acudiu a todos os santos, implorando que algum deles a levasse como pagamento de tais pecados. Somente Santa Luzia intercedeu por ela, aparecendo em revelação:
_ Dê-me de dez em dez anos os olhos seus e de teus filhos. Assim a cidade poderá ser poupada...
Foi naquela tarde distante que o primeiro olho foi sacrificado.

(mais uma vez um quadro de Lasar Segall como ilustração, espero terminar essa história no próximo post, no post anterior temos a cena inicial que precisa ser finalizada. Ainda continua de pé o convite para que me ajudem. Alguém se habilita?)

segunda-feira, 17 de março de 2008

Olho por olho



(divagações sobre um tema de Segall)
As cortinas abrem-se para uma tragédia familiar. Este no centro torna-se Magno, aquele que nunca dorme e nega pagar o tributo fatal de sua família: Todos têm sua hora de entregar os olhos! Quando a mãe já dormia depois de um dia inteiro de lamentos tão-tristes os dois irmãos se entreolham, cada qual com o olho que lhes resta.
_ Logo não haverá mais qualquer lágrima aqui dentro. _ profetizou Eusébio com rancor na voz...
_ É a vez de morrer um olho que nunca chorou... _ sussurra Julieta contida.
Primeiro foi a mãe que deu os dois, antes ainda houve o pai já morto, depois foi um olho de Julieta e um de Eusébio. A hora novamente se aproxima e os dois irmãos velam Magno, esperando qualquer pestanejar para que possam arrancar seu quinhão da dívida.

Assalto o quadro de Lasar Sagall para tentar alguma possibilidade ainda mais intensa de comungar com essa obra que tive o prazer de confrontar pessoalmente. E as cores reais são tão vivas! Só mesmo com os próprios olhos para saber como é fraca essa gravura perto da imagem original! A exposição está na Fiesp e foi prorrogada para o próximo domingo... aos paulistanos, não deixam passar essa oportunidade única de conhecer a fundo esse artista tão intenso e ainda tão pouco valorizado pelo grande público.
Quem me ajuda a terminar essa cena?

quinta-feira, 13 de março de 2008

Manhã clara de sol


Toda manhã Edson fazia a barba com a mesma precisão impecável de tempos ancestrais. Diariamente era capaz de repetir o rito sem que fosse necessário enxergar o próprio rosto. E naquela manhã, como sempre, não se enxergava apesar da claridade muito viva e quente que transformava o banheiro numa explosão de luz. Por dentro ele era nuvens e névoas! Mas tão súbito quanto os raios de sol uma voz ecoou no vazio da casa:
_ Edinho...
Então ele estancou, interrompeu o fluxo abstrato de seus pensamentos e lembrou espantado que assim o chamaram um dia. Pela primeira vez em muitos anos pôde ver a própria face, que era clara e límpida, numa expressão de inocência e incompreensão.
Distraidamente se cortou com a navalha, da pequena ferida sangrou um óleo negro e viscoso.


(imagem de Magritte)

terça-feira, 11 de março de 2008

Dia D


Num dia de dor qualquer gesto fica difícil e a inspiração parece nada mais do que um estado alterado de consciência.
Se ainda fosse a velha dor de poetas e pudesse destilar alguma melancolia...
Porém é dor de músculo ferido mesmo e na farmácia tento um último consolo comprando analgésico enquanto a poesia tá em falta.
À minha frente um copo de parafusos pede para ser bebido.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Em sonho de bacante


E Cecília passou por uma fase de sonhos selvagens, despudorados e intensos. Num deles dançava na mata com um cortejo fantástico de mulheres esvoaçadas e bichos mágicos: lembrava-se vagamente de sátiros, ninfas e até animais silvestres que simplesmente bailavam erguendo taças de vinho. Deste sonho Fel fizera parte, ora como uma das mulheres, noutras transformava-se em Sátiro e tocava flauta para ela, que se deixava ser levada por uma embriaguez adocicada.

_ Você era uma bacante...

Concluiu Fel diante de seus olhos espantados de revelação. Mas ela não sabia, não se lembrava de muitos detalhes... tinha certeza apenas de despertar sentindo ainda o cheiro do mato, a textura da terra úmida em seus pés, o corpo mole de dança intensa e a sensação de estar tão repleta de vida e graça que de seus cabelos nasceram pequeninas flores de pétalas mimosas.

(não sei a autoria da imagem)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Rush

Se perdiam nos labirintos do trânsito e todos os dias, voltando juntos do trabalho, acabavam passando tantas horas a sós que se tornaram íntimos. E o que fazer para transpor aquele oceano de carros? Só restava então se entregar àquele cômodo atemporal, rodeado pela sinfonia desafinada das buzinas, que aumentava o suspense preso nos olhos ainda acanhados. Qualquer verdade se esgueirava sinuosa pelo espelho retrovisor e explodia numa beleza que só eles viam na angústia do rush: nasciam-se estrelas e caiam anjos enquanto o resto do mundo apertava seus headphones e se apressava para mais um encontro com sua própria solidão.

(para ilustrar coloco esse lindo clipe de uma cantora que estou querendo apresentar para vocês há um tempo. Essa é Cibelle, paulistana que tem sua carreira desenvolvida em Londres, aqui ela canta London, London, do Caetano com Devendra Banhart. Isn’t cute?)

segunda-feira, 3 de março de 2008

A revolução dos relógios

O rei acordou aquela manhã com a hora perdida. Como não o haviam acordado numa bruta segunda-feira? Pensou indignado, enquanto corria aos aposentos de seus assessores, mas estes também acordavam atônitos, sacudindo seus relógios misteriosamente parados. E nada no reino funcionou aquele dia: não havia pães nos fornos, transporte público, escolas, fast-food, ou bolsa de valores. Tudo acordava com sonolência, embriaguez e inocência. Nem o 130 sabia dizer que horas eram.
Sentindo-se inútil só restou ao rei decretar estado de calamidade pública, mas para o povo foi mais um feriado nacional.


(imagem de Dali)