quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Os amantes descuidados


Foram descobertos pela manhã dormindo num canto da praça.
Primeiro foram alguns moleques que cercaram ávidos o casal nu e ainda adormecido, depois o bêbado da praça começou a atropelar uma cantilena irreconhecível, logo o pipoqueiro, que foi chamar o vendedor de cachorro-quente, que veio seguido de algumas senhoras ruborizadas diante de tão incrédulo despudor.
Em poucos minutos toda a praça transbordava em gargalhadas e insultos, saboreando as delícias do escândalo. O casal acordava lento, ainda tão embriagados um pelo outro que nem puderam fugir e se recompor quando as mãos avançaram sobre eles.


E em júbilo de vingança toda a multidão comungou faminta do amor proibido.


(Este conto foi mais um resgate do blog anterior, era o último que não tinha migrado para cá ainda, na imagem o Beijo de Klimt)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Velho amigo


Na praça e ruas que andou por toda a sua vida o velhinho tão antigo quanto a própria cidade sofria uma angústia profunda: estaria seu grande amigo ainda vivo? Perguntava-se todos os dias ao passar em frente à casa azul, ao lado da quadra da paróquia, lembrando que sua senhora sim, morrera em tempos perdidos e até recordava de segurar na alça do caixão, mas quanto a seu amigo de mais de sessenta anos, compadre e companheiro até de travessuras adolescentes, não conseguia lembrar. Assim passava horas perambulando, indeciso se batia na casa azul ou não. Temia encontrá-lo morto! E que lhe dissessem que ele próprio conduzira uma das alças. De vez em quando abordava jovens, que talvez fossem netos de algum fulano, e perguntava se por acaso não conheciam o homem da casa azul, ao lado da quadra da paróquia, se sabiam se ele estava vivo ou morto. Nenhum desses estranhos tinha a resposta e assim o velho voltava pra casa angustiado, imaginando que se seu amigo estivesse vivo já o odiava, pois há tanto tempo lhe devia uma visita.

(imagem de Dali, em suas fases iniciais)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Curtas de meio de semana III


1 - A Cozinha Tenebrosa de Celso Amâncio
Constatações:
A) – É divertido macetar bifes.
B) – Brócolis é melhor cozido do que cru.
C) – Se almoçar fora como melhor, tenho menos trabalho e ainda fica mais barato.
2 – Ontem fui há uma palestra com Jean Claude Bernadet e Rubens Rewald sobre a obra de Vinaver... consegui uma luz para a peça que estou tentando escrever... mas o ponto alto foi um homem que deu um pequeno escândalo porque a leitura da peça a ser estudada foi feita por uma mulher só, e não quatro atores... aí a moça pediu desculpas em nome da organização do evento e disse:
_ Olha, o que posso fazer é providenciar para o senhor uma cópia do texto, aliás, quem quiser uma é só me procurar depois.
Jean Claude e Rubens se entreolharam e cutucaram a moça.
Detalhe importante que ela esqueceu: os dois estão justamente lançando a tradução inédita da peça que a moça se prontificava a xerocar.
3 – Apesar das comemorações e eventos do aniversário de Sampa estou fugindo pra São Roque com meus amigos pra caçar duendes! Até a vista!

(imagem de Giuseppe Arcimboldo)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Madrugada


Cecília não sabia a quem escolher como seu primeiro amante... e antes mesmo que pudesse eleger alguém Fel apareceu numa noite de fragilidade e a levou para casa.
Para ele Cecília não podia ser mais do que uma desconhecida bela e inesperada que surpreendera dançando sozinha.
Naquela primeira noite beberam vinho e deixaram que seus pensamentos passeassem por fantasias... até arriscaram uma conversa insinuante, mas antes que qualquer atrevimento acontecesse ela dormiu como uma menina no sofá enquanto ele falava sozinho.
E a fada do desejo bocejou três vezes, olhou as horas e suspirou... sentindo-se ignorada e despeitada resolveu abandoná-los à própria sorte.

(imagem de Picasso
)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Noturno


Diziam que Horácio era o bom entre os depravados, o cordeiro escondido no covil de lobos, ou até mesmo o salvador que viera purificar aquela estirpe odiada há gerações. Dizia-se que todos os membros daquela casa eram corruptos, da velha matriarca que uma vez prendera uma criada por semanas no sótão à criança que colocava escorpiões nos pertences alheios. Diziam também que Horácio era o único capaz de conter as discussões agressivas e remediar as crises que sempre tomavam voz durante o jantar.
O que ninguém dizia era o destino da caminhada que fazia todas as noites após a sobremesa. Quando o sono transformava qualquer rancor em balbucios infantis ele desaparecia sorrateiro por duas horas.
Apenas a noite era testemunha do pecado que cometia diariamente, em solenidade de ritual.
Praticava-o silenciosamente, através de mãos delicadas e impunes para retornar à casa feliz e plácido, em sonhos de homem santo.


(imagem de Magritte)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Mini-melodrama


Era uma vez uns gritos perdidos na noite:
Capítulo1
_ Socorro, pelamodedeus alguém me ajuda que ele tá me batendo... Socorro! Tá me machucando esse desgraçado! SOCORRO!
(som de pratos e objetos se quebrando)

Capítulo 2
Depois de um silêncio breve:
_ Ai amor, não vô dormir aqui de fora não. ME DEIXA ENTRAR NESSE QUARTO AGORA!

Capítulo 3
Amorosamente:
_ Ô meu querido... já tô calminha... eu explico tudo, deixa eu entrar no quarto, sebe que te amo, esse povo fala demais. Prometo que não vou fazer nada contigo, meu querido, deixa vai... oh meu neguinho abre logo vai...

Capítulo 4
Duas horas depois e novamente aos gritos e com batidas estrondosas na porta:
_ Seu desgraçado! Me dá pelo menos o meu maço de cigarros
...


(imagem de Di Cavalcanti)

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Volta


Em reviravoltas a gente revive até o presente...
E de repente, seja mergulhando no aconchego do colo materno, dentro da natureza morta de uma trilha esquecida do cerrado, ou nos olhos carinhosos dos amigos eternos as lembranças assaltam com uma ânsia violenta:
_ Lembra que quando te conheci achei que você era outra pessoa?
_ Está parecendo aquela época das tempestades...
_ E quando você me fez pular o muro para entrar naquela festa?
Mais do que nunca a gente se deixa transformar em colcha de retalhos e tem a certeza de que reencontrar os fantasmas ajuda a sorver a intensidade do agora! Desejando que todas essas lembranças que ainda abarrotam a cabeça do recém-chegado possam diluir-se numa ficção natural e orgânica como frutos silvestres...
A casa ainda é a mesma, São Paulo parece mais cheia e o coração aguarda os reencontros do presente.
Fui muito bom recolher tantas lembranças e carinho deixados... é muito bom estar de volta!

(pés desfocados da esquerda para direita: Lawrence, Maria Cláudia, eu e Gabriel na rodoviária de Sacramento... e atendendo a pedidos o blog terá mudanças de cor e talvez até de formatação... muitas pessoas tem dificuldade em ler letras brancas em fundo preto. Nas próximas semanas pode ser que faça vários testes, sintam-se à vontade para opiniar!)